O II Seminário Internacional Casa Aberta aconteceu de 26 de outubro
à 8 de novembro. O seminário ocorre em consonância com a semana
acadêmica do curso de teatro. No dia 30 de outubro alunos do curso
de graduação em teatro da UFSJ se encontraram para trocar as
experiências profissionais e acadêmicas na forma de comunicação
oral. O grupo Transeuntes – Urbanidades marcou presença com
estudos realizados a partir do espetáculo Deus é Fiel- Marca
Registrada. Acentua-se a produção científica estimulada pelo
grupo e a dedicação à pesquisa que o espaço acadêmico reflete.
Os trabalhos podem ser encontrados na íntegra no livro Pequeno
mapa de encontros e afetos organizado
pela Professora Doutora Juliana Mota do curso de teatro.
Abaixo encontram-se os títulos publicados e seus respectivos
autores.
Iolanda de
Lourdes, Ines Link, Luis Firmato e Marcelo Rocco.
A REAÇÃO TRANSEUNTE FRENTE A UM ESPETÁCULO PERFORMATIVO: UM ESTUDO SOBRE DEUS É FIEL - MARCA REGISTRADA
Quando se inicia o processo de montagem de um espetáculo na rua, todo ensaio é vivido como a apresentação oficial. O público se forma gradativamente: alguns passantes interrompem seu percurso para acompanhar a inabitual movimentação em certo espaço da cidade; outros pelo menos observam as ações até seguirem seu caminho adiante, outros veem as cenas dos locais que estão; além das pessoas que já estavam no espaço de ensaio e foram surpreendidas pelo grupo. A cidade não está disponível para as sequências de ensaio que todo ator e diretor deseja (CARREIRA, 2010, p. 5)2. Desse modo, pode-se esperar qualquer tipo de reação da plateia formada, desde admiração e riso a ojeriza e revolta. Entretanto, quando se põe em prática aspectos conflitantes, como a montagem de um espetáculo cujo tema é a crítica a exploração da fé em uma cidade dominada por igrejas históricas e grande parte da população religiosa, os atores-performers preparam-se para enfrentar mais riscos durante o desenvolvimento das cenas. Tomando como ponto de estudo as situações vividas pelo grupo Transeuntes durante os ensaios e apresentações do espetáculo DEUS É FIEL – MARCA REGISTRADA em julho de 2015, vamos perceber as diversas reverberações das pessoas perante momentos que subvertem os fluxos da cidade.
O espetáculo se constrói pelas ruas da cidade sendo guiado pela orientadora Abiqueila3, ocupando espaços do Centro e evidenciando a composição dos atores-performers, que criam figuras e personas e/ou personagens, escrevendo um texto urbano que critica extremismos religiosos que desprezam e atacam certas identidades, abordando temas como o lucro a partir da fé alheia, a homofobia, a submissão da mulher na atualidade (GASPERI,2015)4.
1 Graduando do curso de licenciatura em Teatro (COTEA), da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Bolsista/voluntário do curso de extensão Urbanidades. Estudante-pesquisador do grupo de pesquisa Transeuntes, cadastrado pelo CNPQ. Bolsista do Programa de Iniciação à Docência (PIBID Teatro). Membro do projeto de extensão Murundum- Grupo de Dança Contemporânea da UFSJ.
2 CARREIRA, André. A cidade como dramaturgia do teatro "de invasão". Disponível em: pt.scribd.com/doc/40287815/andre-carreira-a-cidade-como-dramaturgia#scribd. Acessado em: 30/09/15.
3 Interpretada pela atriz Lucimélia Romão.
Em um dos momentos da peça, uma bruxa é atacada por três anjos barrocos e amarrada em um poste; situação que desencadeia uma histeria coletiva e incentiva a orientadora a estimular a população a curar a mulher da bruxaria através de bolinhas oferecidas por dois vendedores. Esta cena faz referência à Fabiane Maria de Jesus, linchada e morta por moradores da periferia da cidade de Guarujá, em São Paulo, no ano de 2014, após ser acusada de sequestrar crianças para realizar magia negra. Durante os ensaios, tal cena sempre chamou a atenção dos transeuntes; entretanto, até metade deles, não houve nenhuma interrupção externa. Por mais que essa situação vista incitasse alguma interferência, o público parecia sentir a energia do grupo e ter receio de invadi-la. Porém, em certo ensaio, no ápice da histeria, dois jovens alheios à peça, que passavam pelo local, se aproximaram e pararam a cena, questionando o que estava acontecendo. A orientadora improvisou seu diálogo, tentando incorporar a cena à interrupção e convidando os rapazes para ajudarem a curar a bruxa. Um deles se afastou; o outro, desinteressado com a proposta feita e com a crença de que o fato era real, acusou o grupo de machucar a mulher amarrada ao poste e de causar barulho em sua vizinhança. Naquele momento, houve uma diluição entre o real e o ficcional, ocasionando uma quebra na energia dos atores imersos na cena. A inversão dos papéis sociais daquele momento, onde o pedestre se tornou uma figura de autoridade, despertou diversas respostas improvisadas dos atores. Depois de tentativas de trazer o jovem para a cena, atingiu-se o limite de uma possível jogo com ele, quando o mesmo disse que "daria tiros" caso o fato não parasse. Foram feitas várias tentativas, mas o grupo não conseguiu resolver a situação por meio da própria cena. Após este acontecimento, o diretor e os atores, temendo uma retaliação mais grave, comunicaram a ele que tal situação fazia parte do ensaio de uma peça de teatro, não sendo real. Visivelmente confuso, constrangido e posto em evidência, o rapaz iniciou uma série de justificativas, pondo em contradição pontos que havia falado. Encaminhado o ensaio para o espaço da cena seguinte, a atriz que interpreta a bruxa amarrada5 chamou o jovem para conversar, explicando sobre o grupo e convidando-o para assistir a apresentação. Essa situação, nesse dia, foi encarada pelo grupo como um dos momentos de maior risco vividos durante o processo, devido ao fato do risco físico dos atores. Segundo Carminda Mendes André, inspirada no livro O Teatro Pós-Dramático de Lehmann (2007), o risco é ao mesmo
4 GASPERI, Marcelo Eduardo Rocco de. Sinopse do espetáculo Deus é Fiel - Marca Registrada. Disponível em: www.invernocultural.com.br/wp-content/uploads/2014/05/guia-de-eventos_SJDR-281C2.pdf .Acessado em: 30/09/15.
5 A atriz Iolanda de Lourdes
tempo uma realidade da rua e um estimulante para o artista (ANDRÉ, 2007, p. 61)6. Curiosamente, nos dois dias de apresentação, o rapaz estava junto ao público, trazendo outros jovens de seu bairro para assistir ao espetáculo. Tal fato teve grande importância, já que mostrou o entendimento do rapaz em relação à cena e a presença de um público que possivelmente não está acostumado a ir ao teatro. Depois de vivenciar um momento crítico, os atores/performers puderam acrescentar na cena de histeria coletiva suas reações vividas com a possibilidade de uma interferência.
Segundo Carreira (in LIMA, 2008), o risco físico permite a difusão de percepções dos atores a partir dos possíveis efeitos dos seus gestos e deslocamentos, sobretudo quando os atores se colocam em espaços não confortáveis e desconhecidos. Portanto, o risco revela-se como a possibilidade de imprevistos, e até de perigo à integridade física
(CARREIRA apud GASPERI, 2010, p.17)7
O espetáculo DEUS É FIEL - MARCA REGISTRADA usa de espinhosos temas para provocar os espectadores a uma reflexão sobre seus extremismos e preconceitos. Essa provocação lançada suscita no público diversos tipos de reação. Estando o espetáculo na rua, o espectador tem uma maior liberdade de evidenciar para o restante do público suas impressões.
Esse local específico e único, muitas vezes aberto à própria cidade, e às eventuais interferências dos espectadores-atuadores, vai trazer ainda a questão do inesperado, do diálogo e da incorporação do acaso dentro da obra. Como Glusberg aponta, "deve-se ter em mente que o elemento inesperado na performance é inesperado não só para o espectador, [...] mas também e primeiramente ao artista de performance, cujo trabalho sempre tem um aspecto de inesperado" (GLUSBERG apud ARAÚJO, 2009, p. 254)8
6 ANDRÉ, Carminda Mendes. O Teatro pós-dramático na escola. 2007. 206 f. Tese (Doutorado em Educação)– Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2007. 7 GASPERI, Marcelo E. R. A aproximação entre a cena contemporânea e o espectador transeunte na sociedade espetacularizada: as margens do feminino: agrupamento Obscena. 2010, 103f. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte (MG), 2010.
8 ARAÚJO, Antonio. A encenação performativa. Disponível em: www.revistasusp.br/salapreta/article/view/60357 Acessado em: 30/09/15
O grupo também presenciou outro momento de interferência de um espectador durante os ensaios em julho. Nesse caso, a cena estava sendo realizada nas escadarias do Teatro Municipal e, como de praxe, um pequeno público se formou ao redor dos atores. Nela, a orientadora Abiqueila tentava "curar" um homem manco e um homossexual, pedindo para isso uma contribuição monetária mensal e entoando cânticos acompanhada de sua banda. Um cidadão presente nesse público tirou seu celular e começou a filmar o ensaio, o que não foi visto como problema pelo grupo num primeiro momento. Todavia, o homem, que se identificou como um professor do curso de Arquitetura, começou a gritar críticas ao grupo enquanto realizava a filmagem, virando a câmera para si e lançando críticas até mesmo ao curso de Teatro, condenando os atores por usarem um espaço público da cidade para realizar algo, segundo ele, errado. Inicialmente, houve revolta por parte do grupo, que chegou a iniciar uma discussão com o homem, questionando os argumentos do mesmo para censurar o ensaio. Mas, visto que ele fazia críticas com poucos fundamentos e apenas para provocar, os atores incorporaram a interferência à cena, cantando uma das músicas do espetáculo para ele. Vendo que seu jogo de exposição havia sido comprado, o homem desligou o celular e se retirou. Essa situação durante um ensaio incentivou o grupo a pensar sobre as inúmeras respostas do público diante do espetáculo, ocasionando a posterior realização de um exercício em que os próprios atores se colocavam no lugar da plateia, criando atitudes que pediriam improvisação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com André Carreira, reconhecer a imprevisibilidade significa aceitar a possibilidade, ainda que momentânea, de uma completa inversão de papéis sociais, e até mesmo da desorganização da ordem estabelecida (CARREIRA, 2010, p.5)9. A cidade vive um fluxo contínuo e intenso, com os pedestres se deslocando pelo espaço sem muitas vezes percebê-lo. Quando essa rotina costumeira é cortada pelos ensaios de um espetáculo de rua, o transeunte se vê como testemunha das ações, despertando seus princípios e formulando questões. Cabe a ele expor suas opiniões ao grupo ou seguir seu curso. Os momentos vivenciados pelo grupo durante os ensaios desenvolveram várias reverberações que foram posteriormente aplicadas no espetáculo. Trazer o espectador a cena, improvisar com ele e conhecer seus argumentos fortalecem as ideias.
9 CARREIRA, André. A cidade como dramaturgia do teatro "de invasão". Disponível em: pt.scribd.com/doc/40287815/andre-carreira-a-cidade-como-dramaturgia#scribd. Acessado em: 30/09/15
A RELAÇÃO DO CORPO
E AS MATERIALIDADES DO ESPAÇO URBANO COMO POTENCIALIZADOR DA
DRAMATICIDADE DA CENA
EDDER
CARDOSO SABINO
Almejamos aqui
refletir acerca da potencialização da dramaticidade do teatro
contemporâneo no âmbito da rua, por meio da relação entre o corpo
e a plasticidade dos espaços urbanos. Para fazê-lo tomaremos como
foco a análise da encenação performativa “Deus é Fiel – Marca
Registrada” criada pelo “Transeuntes: Grupo de Estudos em
Performance”.
O grupo, inserido
dentro do Projeto de Extensão “Urbanidades – Transeuntes”,
ligado à UFSJ realiza diversas ações utilizando o espaço urbano
da cidade e sua:
[...] pesquisa tem
como principal objetivo investigar as propostas de estreitamento
entre a cena contemporânea e o espectador transeunte nas ruas de São
João Del-Rei, visando analisar a inserção do público como
participante das ações performáticas [...] (GASPERI, 2015 )².
Desde 2012 o tema
trabalhado é o consumismo e suas implicações nos usos e práticas
da cidade. Na encenação performática citada acima explorou-se o
eixo guarda-chuva sobre a perspectiva do extremismo religioso e os
mecanismos utilizados para angariar lucros. Faz-se necessário aqui
discorrermos brevemente sobre o conceito de encenação performativa.
Sendo assim o grupo define um grande eixo temático denominado “eixo
guarda-chuva”.
As apresentações
em espaços públicos tensionam a todo o momento a possibilidade de
interação com o espectador transeunte o que aproxima a ação do
happening, mas “[...] justamente o que caracteriza a passagem do
happening para a performance é o aumento de preparação em
detrimento do improviso e da espontaneidade.” (COHEN, p.27, 1989)³;
apesar de manter abertas as vias que exercitam a improvisação e o
acaso durante a cena, o processo de sustentação da obra do grupo
Transeuntes se dá por meio de um processo colaborativo para
levantamento de material ligado aos desejos e pesquisas individuais
de cada ator-performer. A partir disso acontecem ensaios coordenados
que visam organizar as ações dos atores-performers bem como o uso
dos espaços a serem utilizados para as apresentações. Em
diferentes momentos da pesquisa podem-se observar diálogos entre
obras e práticas de artistas contemporâneos.
Dessa forma a obra
dialoga com o espetáculo “Deus é Fiel – Marca Registrada” na
medida em que a dinâmica da cidade pode ser surpreendida pela
presença dos atores-performers e suas ações .
Os espaços da
cidade possuem usos e práticas definidos, em sua maioria atendendo a
lógica de mercado e consumo. As ações do grupo Transeuntes ao
utilizarem tais espaços, promovem situações que subvertem a lógica
dos usos comuns fornecendo diferentes olhares sobre as práticas do
tecido urbano. Ao realizar a inserção de uma cena num local
estabelecido como passagem, como uma ponte, ou praça, as pessoas são
colocadas diante da escolha de decodificar o acontecimento ou
ignorá-lo. Escolhida a primeira opção, novos modos de ver esses
locais são provocados e o lugar em questão é preenchido de novas
significações assumindo um novo status: o de acolhedor do fazer
artístico. Por meio dessa possibilidade pode-se criar caminhos que
atribuam valor de dramaticidade na relação entre o corpo e as
materialidades confrontadas.
Esse entrelaçamento
da paisagem urbana com a presença dos atores-performers possibilita
o exercício consciente de exprimir dramaticidade da relação entre
o corpo e a plasticidade do espaço. Esse diálogo entre os elementos
é apresentado como campo de trabalho e faz parte da proposta
principal ao qual o grupo se propõe. Os atores-performers constroem
um “quadro” com seus corpos e a partir desse esquema livre da
fala, exprimem um texto que se sustenta não só pela dramaticidade
do tema, mas pela presença e pela carga natural que essa presença
evoca.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Sendo
assim consideramos ser o espaço, sua plasticidade e materialidades
de importância crucial para potencializar quando em relação com o
corpo dos atores-performers
e
essa relação como ferramenta potente para gerar energia dramática
num contexto fluído de performatividade em que o acaso seja usado
como possibilidade de enriquecimento da cena.
http://www.ufsj.edu.br/casaaberta/programacao_completa.php
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