A
PERFORMATIVIDADE COMO CONCEITO OPERATIVO DE LINGUAGEM, DE GÊNERO E DA CENA
CONTEMPORÂNEA
Comunicador: Marcelo Eduardo Rocco
de Gasperi
(TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO SEGUNDO SEMINÁRIO DE PESQUISAS EM ANDAMENTO DA PÓS-GRADUAÇÃO/ EBA- UFMG- FONTE:
https://eba.ufmg.br/pos/sepoga/index.php/sepoga/sepoga16/paper/view/53/53)
Resumo: O presente texto realiza uma
breve reflexão acerca da
performatividade como conceito operativo de diferentes linguagens. No âmbito
dos estudos linguísticos, Austin (1990) cunhou o termo “enunciado performativo”
passando a confrontar os discursos filosóficos acerca do que seria “verdadeiro”
ou “falso” na fala, mostrando que alguns enunciados não se norteiam por essas
matrizes dicotômicas, e sim, carregam um sentido de “ação”. Já no campo dos Estudos de Gênero, Judith Butler
(2015), passa a fazer uso do termo “performativo” para designar, grosso modo, o
gênero como um ato performativo, reiterado na esfera social. Por último, as
noções de performatividade – inseridas nos Estudos da Performance – referem-se,
em parte, à consciência de um espaço compartilhado, de um lugar de comunhão em
que o performer e o espectador dividem a presença no mesmo ambiente.
Palavras-chave:
performatividade,
presença, cena contemporânea.
Algumas
noções de performatividade para diferentes campos de estudo
Austin veio nos
mostrar a importância de se estudar a linguagem a partir do seu contexto
comunicativo, diluindo as barreiras entre a linguística e a filosofia. Por meio
de sua pesquisa, Austin (1990) inovou o pensamento acerca da linguagem ao
demonstrar que, ao se proferir um determinado enunciado o sujeito está, na
verdade, realizando uma ação, ou seja, performando. Para Austin (1990), parte
da linguagem é uma forma de ação.
Ampliando
melhor o pensamento acima, pode-se dizer que os critérios anteriormente
utilizados pelos estudos linguísticos, atestando as noções de “verdadeiro” ou
“falso” dadas aos enunciados, passam a ser questionadas, pois os enunciados performativos não constatam
uma verdade em si, mas, sim, performatizam, ou seja, eles realizam uma ação.
Daí que advém o termo “performativo”, da expressão em inglês “to perform” (realizar, fazer). Neste
sentido, o enunciado performativo é visto como um ato, uma realização em si.
Para Judith
Butler (2015), a identidade de gênero dos sujeitos está associada às ações que
são performadas repetidas vezes em sociedade. Neste caminho, pode-se dizer que
as ações de um sujeito podem ser reiteradas como uma forma que o mesmo possui
de se mostrar ao mundo, criando narrativas sobre o próprio corpo e abarcando
discursos, inclusive, que não fazem parte de uma dada ordem social. Neste caso,
o sujeito que performatiza o seu gênero pode estar contestando a normatividade
cotidiana, almejando ultrapassar as fronteiras binárias homem-mulher, como, por
exemplo, o caso dos sujeitos trans.
Caminhando para
além dos Estudos Linguísticos e dos Estudos de Gênero, pois ambas as áreas não
são o foco central do presente trabalho, as noções acerca da performatividade
estão presentes também no âmbito das artes cênicas, em especial, no campo de
estudos da performance: “O conceito de performatividade
é trabalhado hoje, prioritariamente, no campo de estudos da performance, que se
consolidou nos Estados Unidos nos anos 1970 e 1980 [...]” (FERNANDES, 2011, p.
15). Neste lugar
torna-se difícil desvencilhar a noção de “vida” do “caráter cênico”, pois as
fronteiras na relação palco-plateia, ator-performer, real-ficcional, se diluem.
No acontecimento em que o ato performativo é instaurado, o teatro e a vida se
imbricam de tal forma que as características particulares das ficcionalidades e
as compreensões da vida social, pautadas no caráter real, têm suas linhas
imaginárias rompidas, em uma construção sequencial de diferentes
atravessamentos, em que os efeitos do real e do ficcional se dissolvem.
Pode-se dizer
também, que as noções de performatividade consideram “o outro” – no caso, o
espectador – como colaborador do jogo cênico. Este, por sua vez, pode observar
e ser observado, afetar e ser afetado, na configuração de uma experiência
estética marcada por ações abertas, processuais. Além disto, Josette Féral
(2015) aponta que as obras de cunho performativo se inscrevem contra a noção de
ilusão cênica, insistindo mais: “[...] no aspecto lúdico do discurso sob suas
múltiplas formas – (visuais ou verbais: as do performer, do texto, das imagens
ou das coisas) [...]” (FÉRAL, 2015, p. 127-128). Com esta afirmação, Féral não
pretende dizer que a narrativa desaparece na obra de caráter performativo.
Muito pelo contrário, a fábula, o conto e/ou a história podem permanecer na
obra, mas eles deixam de ser o único foco, dividindo a atenção do espectador
com outros elementos da obra in progress.
Dessa maneira, a abordagem sobre a performatividade configura-se na
desconstrução da visão clássica da narrativa – em que o ator usa a sua voz, o
seu corpo, seus recursos técnicos para “levar uma mensagem” ao público, estando
quase sempre subordinado a um texto – na proposição do próprio corpo do
ator/performer como o discurso, ou seja, o corpo vira o enunciado em cena.
Assim como Austin (1990) desfez alguns motes da tradição linguística, afirmando
que parte do enunciado da fala não é apenas indicadora de uma ação, mas é a
ação em si – revelando que alguns enunciados não podem ser analisados fora de
seus contextos de uso –, as artes performativas diluem a duplicidade
ator-personagem, dando passagem a um corpo que não está em cena (apenas) para
veicular uma mensagem, mas sim, para trabalhar um estado de presença diante do
espectador.
Transitando
entre o limite da ficcionalidade e da realidade, o performer não permite que o
espectador o categorize facilmente, enquadrando-o em um lugar satisfatório
situado nas noções tradicionais de personagem. Qualquer tentativa de apreensão
do corpo do ator a partir da utilização das noções clássicas de personagem pode
frustrar o espectador, pois a performatividade deseja instigar as
desterritorializações entre teatro e vida, através de suas interfaces.
Para Féral
(2015), os artistas que se envolvem e realizam a arte performativa, são, antes
de tudo, geradores de fluxos energéticos, cruzando a noção de representação,
sem se fixar, sem se enrijecer nela. Como arte de fronteira, a arte
performativa evidencia o corpo do performer em toda a sua fragilidade, em sua
autonomia e, muitas vezes, em sua insubordinação a algum roteiro previamente
pensado por ele mesmo (pelo próprio performer), uma vez que a experiência dada
pelo momento da construção da obra pode contaminar o teor da proposta,
redirecionando o performer para outro lugar. Consequentemente, as
interferências do espaço, da luz, do som, dos espectadores, etc., mediam a
experiência do performer em cena, desenrolando o processo de feitura da obra ao
vivo, valorizando o processo em detrimento à noção de produto acabado. Isto nos
leva a outro ponto destacado por Féral: o “engajamento total do artista”
(FÉRAL, 2015, p. 128), em que o ator investe em uma forte presença cênica, colocando-se
em risco até o possível limite da exaustão e/ou até mesmo, em alguns casos,
atentando contra a sua integridade física, em alguma instância. Com isto,
pode-se notar que o artista não se preocupa mais com os formalismos de uma
mensagem, mas tenta transformar o seu corpo em discurso.
Contrariamente
à construção de uma obra fechada, o corpo do performer em cena não desejar
veicular uma posição ideológica clara e imediata. Mas sim, suscitar
interrogações a partir de fragmentos deixados pela obra que se constrói,
formulando uma espécie de quebra-cabeça para, posteriormente, convidar o
espectador a montá-lo. Diante disso, o sentido único de uma obra artística cede
espaço para uma experiência difusa, imediata e urgente.
Desse modo, as
obras performativas se apresentam como formas de escrituras cênicas em
constante processo, pois elas não se estancam, ou seja, as artes de cunho
performativo não chegam a um lugar específico, não se prestam a um fim e
rejeitam os desfechos formalistas de uma obra. O que ocorre fora dos esquemas
estruturalistas, o que aparece como lugar instável durante a ação do performer
e o que simplesmente “acontece” em cena passa(m) a ser valorizado(s) pela
performatividade, potencializando a capacidade de percepção do performer que
deseja oferecer ao espectador uma experiência
do real. Como experiência do real compreende-se
uma complexidade de ações realizadas pelo performer que caminham no limite
tênue entre a interpretação e a presença pura do mesmo em cena, na proposição
de um jogo com o espectador, repleto de tensões, incertezas e lacunas que
obscurecem os elementos próprios do âmbito da teatralidade em um jogo na esfera
do real.
A
performatividade na cena contemporânea
O recorte
teórico tem a performatividade no
âmbito dos estudos da performance como
conceito operativo da linguagem. Tal conceito, grosso modo, incide sobre a
desestabilização da narrativa aristotélica. Neste aspecto, a noção tradicional
de personagem dá lugar a uma atuação não representativa, na diluição entre o real e o ficcional, abrindo novas
compreensões sobre as camadas do corpo do ator que, por sua vez, transita entre
discursos abertos e processuais (FÉRAL, 2004). As noções de performatividade
estão vinculadas à arte como uma rede de trocas entre ação artística e público,
pautadas não apenas pelo sentido da representação cênica, mas na aproximação
entre a arte e a vida, na diluição das fronteiras que as configuram. As artes
performativas nascem de campos artísticos miscigenados, integrando expressões
artísticas que ganharam grande destaque a partir de um pouco mais da metade do
século XX. Advinda de uma série de manifestações híbridas, cujos corpos dos
artistas são o foco e não o canal para uma mensagem a uma audiência, a
performatividade enfatiza o tempo presente para a configuração da corporeidade
real e imediata em cena (FÉRAL, 2015). O caráter efêmero do acontecimento
artístico é um dos motes das noções de performatividade, ressaltando as
experiências singulares como aspecto da construção artística, na configuração
de ações sensoriais intensas.
Outra noção
fundamental acerca da performatividade é a percepção do performer sobre a
potência da presença compartilhada.
Ou seja, o performer sabe a todo o momento (ou em grande parte) que seu espaço
está sendo partilhado com outro sujeito: o espectador que participa, sob algum
aspecto, da composição da obra. Sendo assim, o seu suposto espaço de domínio,
onde ocorre a criação cênica, é compartilhado no instante da criação, tendo a
noção da presença do outro como condição importantíssima para a continuidade da
obra em processo. Isto facilita a troca, o diálogo, os deslocamentos entre
performer e espectador, descentralizando as hierarquias, os espaços de poder
que o performer possa vir a ter com “exclusividade”, pois o espectador pode (ou
não) jogar em cena, obrigando o performer a dialogar com ele, na proposição de
um jogo entre as alteridades (FÉRAL, 2008).
A partir da
contaminação mútua entre performer e espectador, alguns territórios previamente
demarcados e/ ou ao menos pensados pelo ator são desfeitos para a construção de
novos territórios mais movediços, mais incertos. Sobre este assunto, pode-se
dizer que a performatividade trouxe novas conformações na relação entre
espectador e cena, orientando o público a partir de matrizes que operam além da
narrativa, caminhando para os aspectos de aproximação física. O espectador é
levado a ter a consciência de sua participação em uma obra artística,
extrapolando o caráter de observador para se configurar como coparticipante.
Seguindo este
raciocínio, pode-se dizer que uma característica importante da performatividade
é se apropriar da diluição de barreiras (físicas e/ou imaginárias) que separam
o performer do espectador, propondo uma série de estímulos sonoros, visuais,
olfativos, entre outros estímulos, para quem participar de seu acontecimento. Nesse sentido, o espaço
praticado a partir da lógica da performatividade transforma-se em nicho para
uma obra aberta, processual, na feitura artística de uma política dos sentidos. Uma política que não se fixa (apenas) em uma
mensagem verbal, analítica e racional, mas que ultrapassa a rigidez dos
discursos formais, institucionalizados, caminhando para outras subjetividades,
outras formas de sentir a construção cênica. Ou seja, a performatividade
transita entre o verbo e a ação, entre o entendimento lógico e a compreensão
sinestésica, entre a potência de uma narrativa formal e a hiperpotência de
imagens fragmentadas, simultâneas ou consecutivas.
Ao longo das
últimas décadas, muitos teóricos do ocidente têm-se debruçado sobre a
conceituação acerca da performatividade[2],
gerando diferentes olhares sobre a mesma. No entanto, pode-se pensar – como um
dos aspectos em comum entre grande parte dos estudiosos – na noção da
performatividade como uma linguagem porosa.
Ou seja, a performatividade nasce da interface das áreas artísticas, contra um
sentido pronto, encerrado de uma obra, rejeitando o status de arte como mero
produto. A sua porosidade está na sua
capacidade de ser contaminada por várias disciplinas, por diferentes mídias, e
por aglutinar diversas culturas, conceitos e modos de se fazer arte. Além
disso, a performatividade tem como o centro de suas preocupações a
experimentação autônoma e criativa, na valorização do ato da feitura artística,
em detrimento da ideia de produto final. Josette Féral (2008) – estudiosa da
performatividade artística – se apropria dos conceitos operativos da performance art[3]
para criar a terminologia “teatro performativo”, a fim de abarcar uma variedade
de expressões artísticas inseridas no teatro contemporâneo, mostrando que a
arte teatral foi favorecida por esta linguagem insurgente:
[...] se há
uma arte que se beneficiou das aquisições da performance, é certamente o
teatro, dado que ele adotou alguns dos elementos fundadores que abalaram o
gênero (transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da
ação cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo
centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo à uma receptividade
do espectador de natureza essencialmente especular ou aos modos das percepções
próprias da tecnologia). (FÉRAL, 2008, p. 198).
Féral (2008)
descreve que as abordagens teatrais quanto à constituição do personagem, entre
outras matrizes cênicas fundamentais ao longo da história do espetáculo
ocidental, passam a conviver com outras formas específicas da cena
contemporânea, cujos significados da presença cênica instaurados no corpo do
ator não deixam os elementos supracitados morrer, mas retiram as hierarquizações
antes postas. Referente à cena contemporânea, pode-se dizer que a performance art desestruturou, em meados
do século XX, as noções sedimentadas de teatro, modificando a perspectiva da
cena até a atualidade.
Nascida da
multidisciplinaridade, a performance art
se lançou como linguagem investigativa, empreendendo a conjugação entre várias
formas artísticas que, anteriormente, eram estudadas de maneira fragmentada
(SCHECHNER, 2006). Tal linguagem nasceu comprometida com os processos criativos
autorais, às vezes autobiográficos, extrapolando, assim, a relação
mercadológica que as linguagens artísticas possuíam:
Schechner
define performance como ação, e propõe-se a explorá-la em diferentes domínios,
em que as práticas artísticas aparecem ao lado de rituais, atividades
esportivas, comportamentos cotidianos, modos de engajamento social e até mesmo
demonstrações de excelência em variados setores de atuação. (FERNANDES, 2011,
p. 16).
A performance art, em seu surgimento,
criticava certas premissas sobre as definições de arte, abalando as concepções
dadas por um sistema elitista que definia o que seria ou não aceito pelo
mercado. Contrários a essa concepção mercadológica, muitos artistas inquietos
usaram a performance art como meio de
veiculação de ideias, como forma permeável de articulação entre as diversas
falas, e, sobretudo, como lutas ideológicas, enfrentando determinadas formas de
exclusão. Enquanto muitas obras artísticas deram – nos anos 60 e 70 – a
continuidade ao caráter contemplativo de exibição pública, geralmente sendo
localizadas em recintos fechados e formais do mercado de arte, a performance art foi uma linguagem
correspondente aos anseios criativos de diversos artistas que buscavam escapar
das definições cerceadas por padrões artísticos da época. Alguns artistas
desejavam subverter as apresentações em espaços institucionalizados, dando
outras possibilidades de feituras nesses lugares. Outros artistas almejavam,
inclusive, fugir dos espaços dos circuitos oficiais de arte, caminhando para
espaços alternativos, entre eles, a rua e os espaços públicos. Nesse contexto,
a performance art apareceu como uma
linguagem remodeladora da subjetividade das relações entre artista e público. O
corpo do ator/performer ultrapassou a definição de atuante para se transformar,
também, em criador. Este ponto é muito emblemático na mudança de paradigma
artístico ocidental, pois revelou que o artista cênico deveria defender mais
que um texto, mais que uma narrativa. O artista deveria se posicionar como ser
humano frente a uma obra. Ou seja, ele deveria colocar o seu corpo em diálogo
com a cena, mostrar seus limites, suas dores, seus pensamentos, suas
resistências, em uma diluição entre o corpo social – o corpo que se apresenta
no cotidiano – e o corpo artístico, muitas vezes exibido para uma audiência.
Parte dos
trabalhos performáticos da segunda metade do século XX foi pensada como uma
defesa de ideias autônomas do artista, indo além da representação de um papel
previamente escrito por um dramaturgo, para dar a concretude estética a um
pensamento, ou a uma ideologia que seria representada sob o signo artístico.
Parte do desejo dos performers foi provocar reações diferenciadas no público.
Público que, teoricamente, era mais acostumado a uma arte contemplativa e
verbal, propiciando assim, o choque frente às obras, a paralisia, o asco, entre
outras afetações. Segundo Renato Cohen:
A
apresentação de uma performance muitas vezes causa choque na plateia
(acostumada aos clichês e à previsibilidade do teatro). A performance é basicamente
uma arte de intervenção, modificadora, que visa causar uma transformação no
receptor. (COHEN, 2002, p. 45-46).
Sobre o aspecto
das afetações, Cohen (2002) vem defender que a performance art desequilibrou as relações de distanciamento físico
e de certo “conforto” que o espectador possuía em muitas apresentações
artísticas tradicionais, forçando o mesmo a repensar o seu lugar perante a
arte, a partir do desconforto das obras que se colocavam à sua frente. Neste
sentido, a performance art começou a
ser entendida como uma linguagem experimental que ressignificaria parte da identidade artística do século XX e, por
conseguinte, do século XXI. Desse modo, a performance
art nasceu da emergência dos artistas de criarem uma linguagem detonadora
de múltiplas sensações, resistindo aos modelos de artes oficiais. Cohen (2002)
salienta que, em seu surgimento a performance
art pretendeu atingir o espectador pelo viés visual, descrito por ele como
caráter “não-verbal”, compondo uma obra a partir do discurso corporal dos
performers, em suas diferentes entonações e modos de interagir com o
espectador. Ainda segundo o autor, ao contrariar o teatro tradicional a performance art se estruturou de
fragmentos interpostos, dando um caráter de collage,
de arte fragmentada, caminhando além da “linha narrativa”.
Com isto,
pode-se ressaltar também que a performance
art hipervalorizou a plasticidade das obras
em processo diante do público, visando seduzir o espectador a partir dos
subtextos presentes na corporeidade do performer, em uma espécie de
“quebra-cabeça”, em que o espectador deveria fechar a obra a partir de signos e
de códigos ainda não sedimentados. Isto fez com que o performer não fosse
complacente com qualquer entendimento prévio, enquadrado e racional por parte do
espectador, envolvendo-o em um emaranhado de sentidos acerca da performance art. Além disso, um dos
objetivos iniciais da linguagem da performance
art foi abrigar o caráter de frescor, de algo novo dado às obras, se opondo
aos mecanismos reprodutivistas de
arte que realizavam e ainda realizam obras profundamente demarcadas, e
exaustivamente ensaiadas para a realização de apresentações sequenciais. Por
conseguinte, o caráter efêmero, de curtas apresentações, ou até mesmo com
exibições únicas, fizeram parte do movimento criador de tal linguagem, dando o
caráter de “evento” para a mesma.
A exibição de
uma performance deveria propor ao espectador a noção de acontecimento único, cuja singularidade pudesse repousar na
experiência vivida pelo momento dado, na fruição de uma obra, cujos contornos
seriam irrepetíveis, na proposição da
mescla artista-performance-espectador. Optando, diversas vezes, por trabalhos
autobiográficos e trazendo questões consideradas, aparentemente, do âmbito
privado, diversos artistas performáticos abordaram temas de suas vidas
cotidianas que ecoavam em questões sociais, tais como o racismo, a xenofobia,
entre outros, propondo ao público uma reflexão aprofundada acerca de tais
temas:
Seus
praticantes [da arte da performance] quase que por definição, não baseiam seus
trabalhos em personagens previamente criados por outros artistas, mas em seus
próprios corpos, suas próprias autobiografias, suas próprias experiências, numa
cultura ou num mundo que se fizeram performativos pela consciência que tiveram
de si e pelo processo de se exibirem para uma audiência. Desde que a ênfase
esteja na performance e em como o corpo ou o self é articulado por meio da performance, o corpo individual
permanece no centro de tais apresentações. (CARLSON, 2010, p. 17).
Dentro dessa
esfera, pode-se dizer que, ao revelar os elementos constituintes das próprias
experiências, os performers traziam à tona camadas de consciência sobre suas
preocupações de âmbito social. Segundo Carlson (2010), determinadas
performances tornaram-se ferramentas políticas para os artistas que as
realizavam, chamando a atenção da sociedade para as causas humanitárias, ou
seja, parte das vozes dos oprimidos que foram sistematicamente calados por
discursos hegemônicos:
A obra da
performance, baseada primeiramente em material autobiográfico e frequentemente
dedicada a dar a voz aos indivíduos ou grupos previamente silenciados,
tornou-se no início de 1970, e ainda permanece nos anos 90 [a época do texto],
a maior parte da performance social e politicamente engajada. (CARLSON, 2010,
p. 187).
A autonomia do
processo criativo dada ao performer é um dos princípios fundamentais da
genealogia da performance, elaborando projetos que, por diversas vezes,
caminham ao encontro das preocupações socioculturais de diferentes sociedades.
A permeabilidade da performance envolve a plateia em um acontecimento
constituído a partir da pluralidade de vozes, dando força motriz aos sujeitos
que, geralmente, não fazem parte do circuito artístico.
Diante de todo
o contexto apresentado, Josette Féral (2008) – dentre outros estudiosos –
percebeu a potência da junção dos elementos próprios do teatro tradicional com
os componentes apresentados pela performance
art, propondo uma chave de leitura para as experiências que vinham e
continuam ocorrendo no teatro contemporâneo, denominando assim, o termo teatro performativo. Seguindo esta linha
de pensamento, pode-se dizer que o teatro performativo não segue,
necessariamente, fórmulas anteriormente dadas. Para Féral (2015), no teatro performativo,
o texto é “indissociável de sua representação cênica” (FÉRAL, 2015, p. 247),
pois ele é ancorado na materialização da cena e, sem ela, tal teatro não tem
sentido existir. O teatro performativo confronta-se com os elementos
particulares da sua expressão pública, na comunicação imediata com a memória
que o artista traz, nas diferentes relações deste com os espectadores e com os
espaços oferecidos. Entre outros pontos, o teatro performativo opera a partir
de discursos abertos, dando ênfase ao “fazer”, na conexão do performer com o
seu entorno, reescrevendo os códigos artísticos:
Se seguirmos
nosso primeiro impulso, duas fortes ideias estão no centro da obra
performativa: de um lado, seu caráter de descrição dos fatos. Por outro, as
ações que o performer ali realiza. A performance toma lugar no real e enfoca
essa mesma realidade na qual se inscreve desconstruindo-a, jogando com os
códigos e as capacidades do espectador [...]. Essa desconstrução passa por um
jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos forçando o olhar do
espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma referência à outra, de
um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena no lúdico e
tentando por aí escapar da representação mimética. (FÉRAL, 2008, p. 203, grifos
da autora).
O teatro
performativo aparece, em diversos momentos, como forma de resistência às artes
pasteurizadas que, algumas vezes, buscam um entretenimento esvaziado, sem tônus
crítico. Mais que ter uma narrativa, o teatro performativo também cria uma ou
mais situações em cena que considera e/ou consideram o outro – no caso o espectador – propondo um jogo com este outro, cujos caminhos a serem
percorridos estarão entre os elementos próprios da teatralidade e da
performatividade, ou seja, no caminho entre o caráter ficcional e o caráter
real:
[...] é
possível especular em que medida os estudos contemporâneos sobre teatralidade e
performatividade são uma resposta conceptual à dissolução de limites entre obra
e processo, ficcional e real, espaço cênico e espaço público, ator e performer.
A hipótese que se considera aqui é que ambos os conceitos podem funcionar como
operadores de leitura da cena de fronteira criada não apenas por uma parcela
significativa do teatro contemporâneo mundial, mas também por artistas
brasileiros. (FERNANDES, 2011, p. 12).
A investida do
teatro performativo no espectador se faz a partir de uma série de elementos de
estreitamento físico, dentre eles, a diluição da barreira geográfica entre cena
e público, promovendo um diálogo direto, imediato, na comunhão entre ação e
reação – sem desvios – com o espectador. Sob esta perspectiva, o teatro
performativo enfatiza a capacidade de contaminação entre a ação/cena/obra e
público. Esta radicalidade de transgressões do espaço, da narrativa e de demais
códigos teatrais desestabiliza o enquadramento “naturalizado” de compreensão do
espectador, lançando este a um desafio sem precedentes: de conciliar os códigos
da teatralidade e da performatividade ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Em
linhas gerais, a intensidade da presença do ator, transformado em performer, as
relações com outras linguagens artísticas, o compartilhamento entre atores e
espectadores, colocando o corpo em risco, geram novos olhares à cena atual,
ampliando as possibilidades do novo sentido cênico. A presentificação dos
artistas na configuração da exposição e do desnudamento de seus corpos foi uma
das grandes forças motoras para as construções cênicas contemporâneas, tendo
como uma das matrizes a experimentação aberta, em contraposição às obras ditas
fechadas por uma estrutura representacional:
No teatro
performativo, o ator é chamado a “fazer” (doing),
a “estar presente”, a assumir os riscos e a mostrar o fazer (showing the doing), em outras palavras,
a afirmar a performatividade do processo. A atenção do espectador se
coloca na execução do gesto, na criação da forma, na dissolução dos signos e em
sua reconstrução permanente. Uma estética da presença se instaura.
(FÉRAL, 2008, p. 209, grifos da autora).
Pensando sobre
este aspecto, pode-se dizer que a experiência de expor o próprio corpo
explicita os campos de aproximação física e sensorial entre a obra e a quem ela
se refere, pois, “as novas artes elaboram as relações corporais, afetivas e
espaciais entre atores e espectadores, buscando a possibilidade de
participação, acentuando a interação em detrimento à mera representação”
(LEHMANN, 2007, p. 170).
No que se
refere à presença do ator, Féral (2009) vê na potencialização da corporeidade,
um importante impacto na produção teatral contemporânea, desempenhando novos
sentidos para os gestos cênicos, novas preocupações com a noção de
espacialidade, na configuração multidirecionada e na horizontalidade dos
elementos estéticos. Segundo Féral (2008) a terminologia “teatro performativo”
não se constitui a partir de uma matriz sólida, tateável, localizada facilmente
pelos discursos teatrais estratificados, mas por enunciados heterogêneos,
envolvendo diferentes percepções de saberes multidisciplinares, escapando
assim, de algumas inscrições dos saberes tradicionais sobre o teatro. Um dos
elementos estruturais do caráter performativo é a realização de um sistema
processual constante, inacabado, como fenômeno que não se delimita em concluir
as obras, na apreensão dos signos já conhecidos pela natureza teatral,
objetivando a produção de novas formas de expressão, sem que a palavra
“falada”, “dita”, seja o principal aparato comunicacional.
O teatro
performativo se constitui a partir de elementos próprios da performance art, na concepção do
trabalho do ator (transformado em performer) em um intenso processo de
descoberta. Um ato de desnudamento perante a arte. A identidade do performer é
exteriorizada na fuga de um lugar seguro para abrigar, assim, o risco iminente,
sem a separação palco-plateia habitual. Sendo assim, as noções de
performatividade caminham ao encontro de reais necessidades do nosso tempo,
pois abrangem a arte com um caráter provocativo, permitindo uma discussão
aberta que as ruas necessitam, em contraposição aos enunciados
espetacularizados da cidade. Ou seja, um embate contra as formas banalizadas de
cultura, em que a própria massificação é o veículo condutor da superficialidade
discursiva.
Considerações
finais
Como visto, a
performatividade foge do lugar comum da corporeidade diária, criando mecanismos
de movimentos contínuos, diluindo fronteiras aparentemente permanentes.
Exemplificando melhor, tal linguagem busca desestabilizar as diferenças
anteriormente claras de condução do cotidiano, partindo da experiência corporal
como mote para a transgressão espacial (FERNANDES, 2011). Vale enfatizar que
não parece ser interessante à performatividade a noção de obras conclusivas,
mas sim, obras abertas que visam gerar a participação por meio da afetação
física. Ela recusa alguns códigos já conhecidos, promovendo matrizes potentes
de expressão, e, consequentemente, configurando possibilidades de pensamento
não pautadas apenas no verbo. Assim sendo, a performatividade atua por meio de
imagens, pela plasticidade, na materialidade das interações entre cena e público.
Referências
citadas
AUSTIN, John
Langshaw. Quando dizer é fazer.
Tradução de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
136p.
BUTLER,
Judith. Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2015.
CARLSON, Marvin A. Performance: uma introdução crítica. Tradução de Thais Flores
Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço da
experimentação. São Paulo: Perspectiva, 2002. 177p. (Debates 219).
FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. São Paulo:
Perspectiva, 2015.
_______. Por
uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala Preta, v.8, p. 197-210, 2008.
FERNANDES,
Sílvia. Teatralidades e performatividade na cena contemporânea. Repertório: Teatro & Dança,
Salvador, n.16, p. 11-21, 2011.
LEHMAN, Hans-Thies. Teatro
pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Tais como Josette Féral, Marvin Carlson, Richard Schechner,
Silvia Fernandes, entre outros autores.
Este artigo não possui o intuito de abarcar a
historiografia da performance art ao
longo do século XX, mas sim, elucidar o leitor sobre determinadas influências
que esta linguagem artística possui sobre o teatro contemporâneo.