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O
INFORME E A SOMBRA EM VALÊNCIO XAVIER
Fernanda Valim
Côrtes Miguel[1]
Mayra Helena
Alves Olalquiaga[2]
Marcelo Eduardo
Rocco de Gasperi [3]
Segundo
Baudrillard, paradoxalmente, o estar em cena exageradamente, o excesso de
exposição (quando tudo é cruelmente visível) leva ao vazio[4].
O livro Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros, de
Valêncio Xavier, explora esse excesso de exposição do sexo, da violência, do
corpo e da morte. A escrita informe de Xavier, entrecortada por fotografias,
desenhos, embalagens de balas, reportagens de jornal e bilhetes recebidos pelo
autor, lembrando as estratégias de comunicação utilizadas pela performance art, traz um cotidiano
terrível e (as)sombroso, mergulhando o leitor no grotesco da vida urbana, onde
mistérios jamais são elucidados, desfechos jamais dados. Os contos de Valêncio
Xavier se apresentam de uma maneira que escapa ao familiar, surpreendendo nele
o estranho e o sinistro.
Desconforto,
incômodo, angústia e melancolia são palavras que bem descrevem o projeto
literário de Xavier. No conto que dá título ao livro, nos tornamos espectadores
vivos da história-fragmento que
recupera a morte: um
assassinato ocorrido na década de noventa, em um parque de diversões de
Diadema, Grande São Paulo, explorado de forma sensacionalista pelos veículos de
comunicação brasileiros da época. A vítima em questão é uma menina de rua, de
apenas 8 ou 9 anos de idade, perversamente violentada, cujo corpo é encontrado
nu dentro de um caixão do trem-fantasma do parque. O evento vai sendo
recuperado pela narrativa espe(ta)cular de um passado factual trágico,
propositalmente invocado através de jogos de alternâncias, avanços e recuos
cronológicos, memórias e reminiscências da dor, da feiúra e da morte.
Aos
poucos, as imagens vão ganhando corpo e sentido perante os olhos do
leitor/espectador: recortes de notícias de jornais recuperam informações
diferentes, nem sempre precisas, sobre o caso policial-detetivesco, em uma
narrativa que se aproxima cada vez mais das narrativas de ficção e de mistério
típicas do século XIX, como as de Conan Doyle e Allan Poe, também fortemente
marcadas pelo jogo ficção/realidade. Locuções sensacionalistas do apresentador
Gil Gomes tentam cobrir o caso do crime bárbaro. Fragmentos de chamadas de
estúdio para outras notícias televisionadas na época, o bilhete de um pedinte,
entregue ao próprio Valêncio Xavier no semáforo de uma avenida de São Paulo,
informações sobre o rendimento da caderneta de poupança, sobre o preço de banca
dos jornais e do pãozinho de 50
gramas, auxiliam na composição do cenário de uma época,
denunciando os contextos político, econômico e social de uma sociedade e
instituindo o “pano de fundo” que poderia justificar - apesar de não o fazer -
parte da sinistra trama. Esse tratamento da morte da menina em imagens
superpostas chama atenção para os deslocamentos
possibilitados pela escrita valenciana, na qual “o lixo – o sensacionalismo, a
crueldade – é nosso.” O que Valêncio Xavier faz é “reciclá-lo com um
refinamento vindo em grande medida desta duplicação limiar – o fato e seu
relato, a brutalidade e sua representação”[5].
Neste
jogo de representação, os personagens, de maneira geral, não possuem nomes ou
qualquer traço que os individualize ou os identifique. Assim, embora se fale
exaustivamente da menina morta nas reportagens e roteiros de programas de TV,
como o Aqui Agora, que entrecortam o
texto, jamais descobrimos quem ela é. A escrita de Xavier não nos possibilita
identificar em seus personagens quaisquer subjetividades distintas, evidenciando
“uma crítica à banalização da vida na sociedade contemporânea, que reduz a
complexidade psicológica do ser humano em personagens-tipo”.[6]
E como a menina jamais adquire uma individualidade, a pergunta que o conto
parece fazer é, será que realmente queremos saber dela ou apenas
consumir a notícia de seu estupro e sua morte, para logo nos esquecermos?
A
menina jamais é identificada. Embora possamos ver seu rosto, jamais vemos seus
olhos, que estão sempre cobertos por uma tarja preta. Explorada sexualmente e
depois pela imprensa para vender uma notícia e, finalmente, por nós, que
consumimos sua história, ela jamais nos fita de volta. Em seu breve estudo da
fotografia, Roland Barthes trata o objeto fotografado como um Spectrum,
palavra que “mantém, através de sua raiz, uma relação com o ‘espetáculo’ e a
ela acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o
retorno do morto”[7].
Para Barthes, ao ser fotografado, o sujeito não é mais sujeito nem objeto, mas
um sujeito que se sente tornar-se objeto, uma micro-experiência da morte, um
verdadeiro espectro. O sujeito torna-se todo imagem, a morte em pessoa, e os
outros o desapropriam de si mesmo com ferocidade. Ao incluir em seu texto a
foto da menina, Xavier parece brincar com esse traço da fotografia, e seu
espectro passa a nos assombrar.
Ainda
segundo Barthes, toda fotografia é contingente e só pode significar, só pode
visar a uma generalidade, assumindo uma máscara, tornando a face fotografada o
produto de uma sociedade e de sua história. Ao inserir uma foto jornalística,
portanto meramente ilustrativa, em um texto literário, Xavier encena esse
potencial de significação da fotografia, chamando a atenção para ela e
dando-lhe o mesmo peso da palavra.
O
uso de fotografias e da outras linguagens no conto da menina morta, e nos
demais contos do livro, rompe o limite seguro e aceitável da literatura
tradicional, dissolvendo-o em um estreitamento tênue e obscuro com o caráter
real do cotidiano da sociedade brasileira. Assim, o
duplo sentido entre o ficcional e o real dado por Xavier atravessa as
fronteiras literárias para a configuração dos elementos constituintes da performance.
Lehmann (2007) afirma que os conceitos performáticos têm como um
dos eixos norteadores a busca da ação real, em contraposição ao domínio das
ações simuladas. Estabelecendo um paralelo ao universo de Xavier, Rremembranças possui em seu enredo um
processo gradativo de transformação ao decorrer da obra, em que o caráter do
real é dado a todo instante, diluindo a barreira entre ilusão e realidade. Este
entrecruzamento é feito principalmente pela característica da linguagem
jornalística que Xavier manipula, visando estetizar a narrativa de tragédias
cotidianas, banalizadas pelos jornais televisivos, virtuais e impressos. Desta
forma, o objeto de comunicação midiático é visto pelos bastidores, formulando
um sentido metalingüístico entre a obra e o acontecimento real
Vivemos um
momento em que o espalhamento da teatralidade e da atitude performática
estendidas à mídia, ao cotidiano, está em permeação constante com o mundo
espetacularizado, desfronteirizado (DEBORD, 1997, p. 27).
Manipulando as notícias
sensacionalistas sobre um ato de violência urbana, Xavier cria estados performáticos de ruptura e continuidade textual, re-significando
o conteúdo da notícia jornalística em“ uma obra de fronteira entre o
factual e o ficcional” (ROCHA, 2009).
Tendo um olhar apurado sobre tal ótica sensacionalista, Xavier
revela que o real pode ser dado como ficção e vice-versa, em um intenso jogo de
luz e sombras, em que algo se revela e algo se esconde a todo o instante. Desta
maneira, o leitor não consegue perceber com clareza os pontos referentes à
ficção e ao real, bem como o caminho a seguir. E a linguagem híbrida, construída
a partir da colagem textual “motiva questionamentos a respeito
da autoria, da relação entre realidade e ficção e da subjetividade como
interferência natural, na escrita de qualquer tipo de texto”(KOBS, 2010).
A
colagem textual na obra de Xavier, mesclando informações de noticiários televisivos,
verbetes de dicionários, elementos iconográficos e a linguagem da oralidade, caminha
em contraposição a um texto linear, pois possibilita diferentes versões sobre o
enredo e uma leitura aberta e processual. Com isto, o conto não leva o leitor a
um local seguro e claro sobre os acontecimentos. Ao contrário, o autor propõe
um jogo de quebra-cabeças a ser montado e digerido, aumentando as
potencialidades do reduzido discurso dado aos jornais que, por sua vez, buscam
o apelo à tragédia cotidiana para alavancar o ibope.
Assim, o conto se mostra aberto à contribuição do leitor, que é convidado
a dialogar com este, refletindo, sintetizando e sendo contaminado pelo teor da
obra. Com isto, ele deixa de ser mero espectador receptivo da obra para
tornar-se colaborador dela, elaborando significados maiores que o fio condutor
que o livro estabeleceu. Desta maneira, Xavier reapresenta o fato e sua
representação pela mídia, tornando-o um suporte para a
exposição de suas escolhas estéticas e de seu projeto literário particular.
A
narrativa da morte da menina denuncia o processo de consumo e de esquecimento
que marca a vida nas grandes cidades, o consumo de vidas, da miséria alheia, da
morte e da tragédia alheia, que logo cederá lugar a outra tragédia, e depois a outra,
a outra, a outra. Ao lado da primeira foto da menina, Xavier coloca a mesma
manchete de jornal anunciando o crime bárbaro repetidas vezes, fazendo com que
sua história perca qualquer senso de individualidade. Novamente o texto parece
nos confrontar com mais perguntas, as quais não tenta responder. São quantos os
meninos de rua no Brasil? E sendo tantos, é possível nos compadecermos com
eles? É possível realmente enxergá-los?
As
imagens do local do crime exploradas no conto dão a este ainda uma camada de
ironia, cuja crueza espelha a brutalidade do mundo retratado. A menina entra no
jogo, “O mundo do Terror”, pela “Entrada dos corajosos”, mas jamais sai viva
pela “Saída dos sobreviventes”. No jogo de luz e sombra acionado pela ironia
valenciana, a ideia do parque – que remete à diversão, brincadeira – é
subvertida quando o terror se torna real. Por outro lado, a imagem ausente
da narrativa, a do corpo morto, que também institui a ausência da menina do
mundo dos vivos, torna-se mais assombrosa na imaginação daqueles que
rememoraram sua curta história do que qualquer tentativa explícita de
representação através de índices iconográficos.
Os
fluxos imaginários construídos por Xavier, a partir de imagem das memórias de
um acontecimento, partem do
destaque de elementos performáticos que nos são sugeridos a partir da leitura
do conto, e acabam por conduzir à constituição de determinados núcleos de
significado os quais, com base em Derrida (2008), poderiam ser lidos como
“rastros de rastros” que nos indicariam pistas para o mapeamento e constituição
de certas memórias “do horror” evocadas: a matéria sobre a morte nos conduz à
fala de Gil Gomes, que nos conduz à fala de outro jornalista, seguido de um
intervalo comercial, o signo de uma numeração aparentemente estranha (= - 17),
à foto do parque de diversões, ao horário da suposta morte (onze e meia da
noite), à imagem de um relógio que marca justamente a sombria meia-noite, a
indicação do nome do suposto assassino (Nena), que por conseguinte nos leva ao
rastro da definição da palavra “Nênia” (canto fúnebre, canto triste, canto
mágico, canção infantil). Em seguida, somos guiados ao rastro da imagem da
anatomia de um pé, jogo metonímico engenhoso, dado que teria sido esta a
primeira parte revelada daquele corpo infantil. Portanto, os
rastros aparentemente caóticos e
dispersos acabam por nos conduzir a teias de significados coerentes e a certas
filiações históricas e ficcionais. O termo “rastro” aqui mobilizado possibilita
um duplo sentido, já que além de ser tomado a partir da noção derridiana, ele
também pode ser compreendido indicando um sentido de vestígio, marcas visíveis
ou efeitos de sentidos que partiriam do texto literário. Desse modo, restaria a
questão sobre quais deles deveriam ser mostrados, evidenciados, e quais teriam
sido apagados, ocultados (“Apaguem as pegadas”). O fato é que, assim como a
imagem de um vagalume ou de um abajour, ora aceso ora apagado, aqui tanto a luz
quanto o apagamento parecem sugerir um resgate de memórias e reminiscências,
propondo uma reflexão sobre o que se diz e o que se deseja
dizer ou o que se vê e o que se deseja ver (ou ocultar).
A escrita performática de Xavier e seus “rastros de rastros” também
nos levariam a determinadas práticas socioculturais que são elementos
significativos mediadores entre ficção
e realidade, e é justamente por isso
é que elas poderiam ser aqui tomadas como espécies de faróis que, vez ou outra,
lançariam luz e iluminariam certas direções, indicando quando estaríamos nos
aproximando ou nos afastando das rotas traçadas.
Derrida afirma não existir “em toda parte, a não ser diferenças e
rastros de rastros” (2001, p.32). Nesse sentido, Ester Heuser comenta de
maneira esclarecedora a noção criada pelo filósofo:
O
termo rastro (trace) é usado por Derrida para pensar a estrutura de
significação em função do jogo das diferenças que supõe síntese e remessas que
impedem que um elemento esteja presente em si mesmo e remeta apenas a si mesmo.
Tanto na ordem do discurso falado, quanto do discurso escrito qualquer elemento
que funcione como signo remete a um outro elemento, o qual, ele mesmo, não está
simplesmente presente. Ou seja, cada termo traz em si o rastro de todos os
outros termos que não ele próprio (HEUSER, 2008, p.59).
Fernando Machado
Silva propõe que “os rastros são ainda pedaços de vida depois da morte, não nos
indicam apenas a presença defunta de um corpo, podem mesmo ser um suplemento de
uma outra vida, um outro corpo, uma outra obra de arte” (2009, p.114).
Parece-nos
que este uso narrativo deslocado, como esboçado anteriormente, criado na
montagem do conto, bem como seu apelo documental e imaginativo, criaria a
própria noção do desvio e do informe, afinal, “de que modo ler as
Rremembranças quando o sentido que produzem não é dissociável do
estranhamento causado pelo fato que recuperam?”[8].
Residiria justamente aí, nesses jogos de cena, jogos de linguagem e
processos metonímicos, uma força expressiva e intensa que retomaria o
embate sobre o estatuto da verdade, revelando-nos um certo teor
testemunhal[9]
da ficção de Valêncio Xavier, pois a narrativa recupera vozes de sujeitos
que nunca tiveram a chance de se pronunciar e testemunha memórias da violência e
de sua espetacularização. Não se trata do próprio sujeito narrador de sua
história de trauma, mas da própria narrativa que reflete, como num jogo
espectral, a questão da história e da ficcionalidade e da construção estética
da ficção.
Os
temas da sexualidade, da violência e da morte, explorados por Xavier na
história da menina morta, são também explorados nos demais textos que compõem a
coletânea. No conto que abre o livro, tudo se passa em um cinema “bem
vagabundinho”. O personagem chamado apenas de Veado começa a masturbar o homem
sentado ao seu lado, e de repente sua cabeça simplesmente cai em seu colo. Enquanto
O Veado grita, sendo logo preso pela polícia, o corpo do homem sem cabeça sai
andando despreocupadamente do cinema. Do Veado, sabemos depois apenas que sua
história acaba em uma cela com outros presos, e que “acaba mal”.
No
conto seguinte, “O barqueiro da morte” (supostamente uma história verídica), um
casal de idosos tenta sair de sua casa em um bairro pobre de Curitiba, fugindo
de uma enchente. Só os conhecemos por Velho e Velha. Antes mesmo de a água
encher a casa, a mulher começa a tossir sangue. Pobres, moradores de um lugar
em que o esgoto da cidade é despejado, a última imagem do conto nos dá uma
dimensão de sua insignificância, toda sua existência é resumida na única coisa
que resta, uma figurinha das Balas Zequinha. As Balas Zequinha eram tradicionais
em Curitiba e em cada embalagem estava esse personagem, o Zequinha, em uma
atividade diferente. O Velho havia conseguido a mais difícil, Zequinha viúvo, o
que dá ao final do conto também um senso de humor bastante negro. Em cenários
como o cinema vagabundinho, o parque de diversões em Diadema e no bairro pobre
de Curitiba, sexo, violência e morte são as únicas experiências possíveis, nas
quais a racionalidade e a redenção não têm lugar ou função. E, desta forma,
podemos dizer que frases como a que fecha o conto “7 O nome das coisas”, “e o
nada” ressoa por todo o livro. A morte, em especial, surge como algo atroz,
macabro e violento e, ao mesmo tempo, prosaico, o que aumenta nosso desconforto
durante a leitura dos textos. O lado sombra da experiência humana, o corpo, a
sexualidade, a morte e a violência, a sombra do horror, repercutem nos contos
de Valêncio Xavier, através de uma estratégia de escrita informe, escrita da
sombra.
REFERÊNCIAS
BARTHES,
Roland. A câmera clara. Notas sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
DERRIDA, Jacques. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica,
2001.
HEUSER, Ester Maria Dreher. No rastro da
filosofia da diferença. In: Derrida & a Educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 1ª Ed., 2008.
NEVES,
Ligia Amorim. Um estudo sobre a escrita literária de Valêncio Xavier. Acta Scientiarum: Human and Social Sciences, Maringá, vol. 8, n. 1, p. 37-46, 2006. Acesso em 17
mai. 2011.
ROCHA,
Reuben. Ficção-Verdade: Fronteira semiótica na montagem narrativa de Valêncio
Xavier. Revista Rumores, São Paulo, vol. 1, set./dez. 2009. Disponível
em: www.usp.br/rumores. Acesso
em 17 mai. 2011.
SILVA, Fernando Manuel Machado Arnaldo Pinto da. Da Literatura, do Corpo e do Corpo na
Literatura: Derrida, Deleuze e Monstros no Renascimento. Dissertação de
Mestrado. Universidade da Beira Interior, 2009.
XAVIER, Valêncio. Rremembranças
da menina de rua morta nua e outros livros. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006
[1] Doutoranda em Literatura Comparada pela UFMG.
[2] Doutoranda em Literatura Comparada pela UFMG.
[3] Doutorando em Artes Cênicas pela UFMG.
[4] Baudrillard apud Neves, 2006, p. 40.
[7] Barthes, 1984, p. 20.
[9] Termo que parece ter sido cunhado
por Márcio Seligmann-Silva.