URBANIDADES: INTERVENÇÕES URBANAS[1]
Marcelo Eduardo Rocco de Gasperi[2];
Iolanda de Lourdes de Santos
Tomé[4]
Luis Carlos Firmato Silva Lebre[5].
Curso de Teatro
Departamento de Letras, Artes e Cultura
Resumo: O projeto de extensão “Urbanidades: Intervenções” nasceu em 2012 através
do diálogo entre os professores Ines Karin Linke Ferreira e Marcelo Eduardo
Rocco de Gasperi do Curso de Teatro- COTEA (UFSJ), e se fundamenta em ações
desenvolvidas anteriormente por ambos. Em primeira instância, o projeto partiu
da realidade cotidiana e da memória pessoal de moradores da cidade e demais
participantes para criar um repertório de materiais e pontos de partidas para
as ações artísticas. Foram realizadas experiências de imersão através de
intervenções performáticas por parte dos estudantes, bolsistas e voluntários
que entraram em contato direto com os transeuntes, moradores, nosso público
alvo neste projeto. Tais trabalhos foram construídos pelo projeto de extensão
em parceria com o grupo de pesquisa “Transeuntes- Estudos sobre performance”,
da mesma coautoria.
Palavras-Chaves: Intervenções urbanas; Espectador
transeunte; Cidade; Espaço público.
INTRODUÇÃO
A noção de “cotidiano” está diretamente
atrelada a uma infinidade de ações diárias, entendidas como práticas
comunicativas que se organizam em um amplo movimento de conservação ou de
mudança de aspectos da sociedade, permitindo assim, sucessivos acontecimentos
da vida social. Pode-se dizer que o cotidiano é constituído por múltiplas
experiências que ocasionam transformações tanto em aspectos locais, quanto em
escala global (GIDDENS, 1995).
Sendo assim, o cotidiano abrange as
rotinas diárias das sociedades, as diferentes formas de convívios entre os
cidadãos, e novas relações sociais, cujos resultados podem ser mudanças e
adaptações à vida na comunidade (BRETAS, 2006). Deste modo, o cotidiano,
associado às experiências entre os seres, reveste-se de tradições,
deslocamentos, rupturas, compreendendo em si os saberes ordinários, necessários
à sobrevivência, como também as produções intelectuais (CERTEAU, 1994).
Neste aspecto, a vida cotidiana se
configura na interação com o outro, nas diversas formas de representações
culturais, advindas das experiências dos participantes dos processos
comunicacionais. As práticas do cotidiano fazem, também, emergir as funções
normativas da sociedade, possibilitando certo equilíbrio nos laços sociais. Com
isto, o cotidiano passa a ser atravessado por instituições (religiosas, legais,
familiares, etc.) consideradas agências reguladoras que estabelecem as relações
de controle com a comunidade. Tais instituições influenciam os hábitos sociais,
os comportamentos individuais, as práticas de comunicação. Estes aspectos de
conservação, de restrição e de cooperação dos aprendizados cotidianos, garantem
certo equilíbrio e atuam na tentativa de controle na dinâmica da vida social.
No contexto do cotidiano, pode-se dizer
que a rua, dentro da ótica da sociedade burguesa, foi criada, inicialmente,
para viabilizar a circulação dos cidadãos entre diferentes partes da cidade,
mas, devido ao crescimento da urbe, ela foi contraindo inúmeras outras funções
(CARREIRA, 2007). A rua, juntamente com os demais espaços públicos, tais como
as praças, passou a ser vista como local de encontros e manifestações de
grupos, propiciando diálogos, embates, e até momentos de lazer. Ou seja, a rua
tornou-se um território vivo dentro do eixo urbano, repleta de tensões e
vontades por parte dos sujeitos que passam por ela, resultando diferentes
formas de utilização e compreensão de seu uso contínuo. Como eixo de passagem
dos transeuntes, a rua e os espaços públicos podem ser vistos também como
passarelas de identidades, reflexão e energias compartilhadas, testemunhando
diferentes formas de vida. No entanto, o capitalismo contemporâneo tende a diminuir
o poder investido à rua, sobretudo nos grandes eixos urbanos, deixando-a apenas
como mero lugar de deslocamento dos cidadãos, ou pior, dando a ela o caráter
estritamente comercial de compra e venda de produtos, bem como, de circulação
do trabalhador no sentido casa-trabalho, e vice-versa. Com isto, a rua que, no
início da sociedade burguesa, assumia, entre outras funções, um meio de
encontro, hoje se vê, muitas vezes, reduzida à mercadoria, redimensionando o
cidadão às funções de trabalhador e de consumidor, não restando assim, muitos
espaços que escapem às leis do mercado (DEBORD, 1997).
No que concerne às cidades, sobretudo
as grandes metrópoles, os espaços públicos vêm se transformando em locais cada
vez mais monitorados, assépticos, para que não haja grandes interferências que
possam corromper o fluxo da mercadoria, bem como, a manutenção da cultura
hegemônica. Esta tentativa de controle de utilização dos espaços cotidianos
entra em constante colisão com os desejos dos cidadãos que visam escapar, apropriar
e desmembrar ordens prévias do sistema hierárquico, provocando simultâneas
tensões, disputas e manifestações que desafiam certos discursos estratificados
de poder. Tal inconformismo perante a institucionalização do uso da rua e
demais espaços públicos, que visa definir “quem” e “quando” usar tais locais,
gera em parte dos cidadãos, o anseio de preencher tais espaços com ações
alheias ao ritmo usual da cidade. A partir de diversas formas de ocupações e
mantendo a liberdade de uso da rua como ideário político, muitos grupos sociais
se movimentam na contramão da lógica predominante, criando alternativas para
consumir a cidade.
Misturadas entre as várias
possibilidades de manifestações públicas, as intervenções urbanas têm ganhado,
ao longo das últimas décadas, grande destaque entre os grupos sociais. Sobre
as diferentes noções de intervenções urbanas, pode-se associá-las aos
estados de rupturas do cotidiano, desconstruindo certas formas dos espaços já
sedimentados das grandes construções. Espaços estes que o poder do capital
proporciona. Sendo assim, as intervenções podem provocar o cerceamento de
certos padrões para aparecer novas formas de inter-relação entre os seres e a
cidade (CARREIRA in CARREIRA et. al., 2004). Logo, elas são capazes
de alterar as linhas que definem as cidades,
exigindo um novo olhar dos cidadãos sobre as mesmas, nem que seja um olhar
fragmentado, efêmero. Desta maneira, entende-se que as ruas das cidades passam
a ser vistas como estruturas arquitetônicas de intenso convívio. Dentre
várias possibilidades de manifestações públicas na cidade, podem-se ressaltar
as intervenções urbanas que possuem como eixo central o cunho artístico,
estetizador, unindo arte, política e ativismo em intervenções realizadas em
espaços não destinados, necessariamente, para a mobilidade
artística. A respeito de tais aspectos, pode-se pensar o cotidiano
como potência para diferentes discursos artísticos, cujos desdobramentos
permitem provocar pequenas rupturas nas convenções diárias, modificando certas
visões mecanizadas sobre a urbe.
O COTIDIANO E OS DISCURSOS DA CIDADE
Na contemporaneidade, o cotidiano das
cidades está entrelaçado por diversas narrativas transmitidas como resultados
das interações entre as pessoas. Os efeitos de tais interações interferem diretamente
na produção do conhecimento e nas transformações sociais. No dia-a-dia, os
fragmentos que compõem o tecido da memória são gerados pelo encadeamento dos
discursos da cidade, em suas diversas esferas. Walter Benjamin (1994)
descreve que a experiência de narrar é uma forma artesanal de comunicação,
partindo das experiências pessoais do narrador. Partindo desta premissa,
pode-se dizer que as narrativas circulam entre os grupos e redes sociais,
ressignificando o cotidiano através das contextualizações dadas pelos seres que
se comunicam. Como compreende Mikhail Bakhtin (1993), as narrativas são
dialógicas, permeadas por fragmentos de discursos que articulam falas sociais
em sintonia ou em contradição, sendo reconstruídas a partir de diferentes
posicionamentos. Com isto, pensar o cotidiano como lócus de discursos
contrários, de enfrentamento e de fricção de ideias, possibilita entendê-lo
como um palco privilegiado de experiências com sentido renovado, em que o tempo
presente acolhe o saber multicultural e multifacetado.
Inserido neste contexto, o projeto
Urbanidades (UFSJ- Teatro) visa estreitar os laços entre a Universidade e a
comunidade local, tornando as atividades e o conhecimento, produzidos dentro do
Curso de Graduação em Teatro, acessíveis e em comunicação com a população.
Sendo assim, o projeto de extensão “Urbanidades: Intervenções” é uma concepção
de artes que visa a atuar no contexto ampliado da cidade e trabalhar as
instâncias de percepção, discussão e divulgação de aspectos sociais e políticos
de diferentes espaços de São João del-Rei por meio de intervenções artísticas,
desenvolvidas através de uma abordagem participativa e interdisciplinar.
“Urbanidades: Intervenções” nasceu em
2012 através de um diálogo entre os professores Ines Karin Linke Ferreira e
Marcelo Eduardo Rocco de Gasperi do Curso de Teatro- COTEA (UFSJ), e se
fundamenta em projetos e ações desenvolvidos anteriormente por ambos, na
continuação do projeto de extensão, iniciado em 2013. Em primeira instância, o
projeto partiu da realidade cotidiana e da memória pessoal de moradores da
cidade e demais participantes para criar um repertório de materiais e pontos de
partidas para as ações. Foram realizadas experiências de imersão através de
intervenções performáticas por parte dos estudantes, bolsistas e voluntários
que entraram em contato direto com os transeuntes, moradores, nosso público
alvo neste projeto. Tais trabalhos foram construídos pelo projeto de extensão
em parceria com o grupo de pesquisa Transeuntes- Estudos sobre performance, da
mesma autoria.
Nesta vontade de “troca”, foram criadas, em segunda instância, interações
entre atividades cotidianas e ações culturais,
uso e espaço, universidade e cidade, periferia e centro, entre outras, por meio de encontros e intervenções nas ruas da cidade, desenvolvendo
intervenções urbanas e ações artísticas
com alunos, bolsistas, voluntários e moradores.
Tais intervenções geraram o eixo temático que norteou o projeto: Consumo, consumismo e cidadania. Tal temática estabeleceu as novas
ações do projeto, derivadas a partir
das paisagens, objetos, arquiteturas, espaços, monumentos e costumes da cidade de São João del-Rei,
tanto em partes históricas como em lugares considerados “não históricos” pelos
moradores.
Nesses lugares simbólicos foram criadas, através de materiais
de circulação e produção de práticas,
diferentes formas de apreensão do cotidiano
da cidade, particularmente, no campo da percepção estética, e da recepção das obras.
Com isto, as intervenções artísticas realizadas
ao longo de 2013 gerou um produto
considerado pelos autores do projeto como uma “Encenação Performativa” que nada mais é que uma
apresentação cênica nas ruas e em espaços públicos, composta por experiências acerca do Consumo, consumismo e
Cidadania, cuja linguagem norteadora
é a Performance Art.
Uma obra aberta que visa a participação
do público, composto, em sua maior parte, por moradores da cidade.
METODOLOGIA
As narrativas cotidianas compõem um
conjunto de experiências que se agrupam ou se distinguem, possibilitando a
formação de diferentes ideologias, em um fluxo ininterrupto de vida (CERTEAU,
1994). Esta complexidade de discursos articula processos de construção de
identidades distintas, abalando convenções vigentes e estruturando novos laços
de socialização. Tais laços constroem no indivíduo diferentes perspectivas,
confiança nas relações, novos pontos-de-vista e demais elementos constituintes
da identidade, que, por conseguinte, tem um caráter processual, dado ao longo
dos esforços de construção autônoma (HALL, 1996). Então, como pensar em
narrativas artísticas dialogando com as narrativas das ruas, criando
possibilidades de novos discursos a partir do confronto entre a obra e o
espectador transeunte? As intersecções potencializam os posicionamentos dos
seres no mundo, gerando consciência sobre os processos sociais. A ocupação de
espaços públicos e a interrupção do fluxo cotidiano questionam e pontuam
questões sociais, na busca da “participação [do espectador] como
auto-experiência e auto-reflexão” (LEHMANN, 2007, p. 171). Sendo assim, a metodologia de trabalho tem sua base no campo
da investigação teatral compartilhada, tendo
a coautoria entre os diversos criadores (estudantes, moradores, atores),
em parceria com um grupo de pesquisa
chamado Transeuntes.
Criado em abril de 2012, inserido no
âmbito do projeto de extensão Urbanidades, o grupo de pesquisa "Transeuntes:
Estudos sobre performance" foi formado a partir da necessidade de
artistas em ampliar os estudos sobre as intervenções performáticas nas ruas. Em
parceria entre Professores e Alunos do Curso de Teatro (COTEA) da UFSJ
(Universidade Federal de São João Del Rei), o projeto consiste, entre outros
pontos, em estudos teóricos sobre determinados autores que abordam o teatro nas
ruas e em experimentações práticas que visam inserir o espectador
transeunte na construção dos processos criativos, a partir das temáticas
referentes às abordagens atuais. A pesquisa tem como principal objetivo
investigar as propostas de estreitamento entre a cena contemporânea e o
espectador transeunte nas ruas de São João Del-Rei, visando analisar a inserção
do público como participante das ações performáticas.
Neste sentido, o projeto consiste em experimentações cênicas-performáticas que
insiram o espectador transeunte na construção
dos processos criativos, a partir das
temáticas referentes às abordagens atuais.
DESENVOLVIMENTO
Urbanidades desenvolveu intervenções e outras experiências a partir de materiais coletados no cotidiano
da cidade. Destacamos as seguintes ações: CAMINHADAS. Percursos em diferentes bairros
das cidades, inspirados na deriva, a prática
situacionista de criar percursos para
apreender os ambientes. As caminhadas
foram motivadas pela necessidade e pelo
desejo de “praticar a cidade” visando
criar uma experiência coletiva ligando interesses dos participantes nas discussões
e compartilhando as práticas e os treinamentos em espaço público.
EXPERIMENTAÇÕES. A
partir dos vestígios ao longo do córrego do Lenheiro criamos um roteiro ficcional de um assassinato. Queremos desenvolver
a ação em um jogo/espetáculo no qual
o publico investiga os motivos do crime a partir
das diferentes perspectivas (vítima, assassino e testemunhas).
MERCADO DE TROCAS. Discutindo o valor de troca e uso. Fomos à feira de domingo de
Matozinhos para vender produtos, objetos de uso e serviços. Interagimos com as pessoas que estavam dispostas a fazer uma grande variedade de negócios.
CASA: LIMITES DO CORPO.
A partir da ideia
da "Caminhada Performática" realizamos uma ocupação aberta ao publico em geral, dentro da lógica de ações intervencionistas,
realizando construções temporárias e criando corpo-instalações.
ENCENAÇÃO MORRA! Sob as perspectivas da tragédia, consumismo e sensacionalismo,
o espetáculo aborda a morte violenta de uma adolescente e o quanto a sociedade
tenta lucrar com o evento, desde a representação sensacionalista nos veículos
de comunicação aos comerciantes que vendem camisas com fotos da garota. A peça
tem o objetivo de criticar a lógica do capitalismo e sua busca desenfreada pelo
lucro, em que a morte vem se destacando como gerador de renda.
ESTUDO DE CASO: “MORRA!” - UM DOS EIXOS CENTRAIS DO PROJETO
“URBANIDADES” DE 2013
Descrição do procedimento: Partindo do conto “Rremembranças
da menina de rua morta e nua” de Valêncio Xavier[6],
o procedimento consistiu em uma exposição de fotos de uma suposta menina que
fora violentamente espancada e morta, enquanto seus objetos pessoais eram
leiloados por um performer aos passantes nas ruas. O espectador poderia tirar
fotos ao lado da menina morta, levando para casa um souvenir da mesma. Uma
performer colocava seu corpo seminu ao chão, estendido ao lado de uma placa com
os dizeres “estive com a menina morta e me lembrei de você”.
Diálogo com o público: o procedimento performático “A menina
morta e nua”, construído em 2013 pelo grupo de estudos “Transeuntes” (UFSJ) no
projeto Urbanidades, teve como eixos temáticos o sensacionalismo, o consumo e a
tragédia, linhas cujos princípios são definidos pelo capitalismo contemporâneo
que engloba as relações humanas sob o aspecto da mercadoria. “Transeuntes” se
baseou em um conto chamado “Rremembranças da menina de rua morta e nua” (2006)
de Valêncio Xavier, que traz em sua trama a história de uma tragédia anunciada:
uma menina de rua que foi estuprada e morta em um trem-fantasma no interior de
São Paulo. Mesclando ficção e realidade, Xavier revela o lucro imediato que a
morte da menina traz aos jornais televisivos, aos comerciantes que vendem
souvenires da menina, entre outros artefatos. Assim, a notícia de tal tragédia
é consumida insistentemente pelos espectadores. Usando tal conto como base
prévia da pesquisa cênica, o grupo “Transeuntes” criou uma ação em espaços
públicos de São João del Rei (MG), cuja estruturação busca elementos próprios
da performatividade para a concepção deste trabalho.
O cidadão sanjoanense, enquanto
transitava pelas ruas centrais da cidade descrita, se deparava com diversas
fotos da “menina morta”, cujos anúncios nos jornais criados pelo grupo
“Transeuntes”, visavam confundir o espectador sobre a veracidade do fato. A
ação transcorria em frente ao Largo do Carmo, um espaço de intenso movimento na
cidade. Um performer[7] narrava
a suposta morte da menina, que fora espancada e estuprada naquela cidade.
Posteriormente à narrativa, o mesmo performer leiloava os objetos pessoais da
menina para lucrar sobre tal acontecimento. Em seus objetos de venda havia uma
aparente patente criada: uma marca, cujo nome era “menina morta”, com todo
o layout destinado a uma marca registrada de produtos postos
em prateleiras. Os produtos eram variados: copos com fotos da menina morta,
camisetas contendo fotos da menina com os dizeres “saudades de você”, objetos
“pessoais” da menina, brincos, cremes de rejuvenescimento com o rosto da menina
estampado no pote, etc. O espectador poderia ter tais produtos, levando para a
casa um souvenir que lembrasse aquela dor, que remetesse à menina.
Tal
procedimento objetivou estabelecer um paralelo entre a ilusão e a realidade.
Este entrecruzamento foi feito para se pensar sobre como a tragédia cotidiana
das cidades pode ser estetizada diariamente pelas redes sensacionalistas,
fazendo o espectador consumir diariamente a morte violenta entre outros
acontecimentos, cujas esferas do lucro imediato são o mote para mover a
engrenagem da notícia. Desta forma, o objeto de lucro era a própria menina
morta, cuja humanidade se esvaía para que todos pudessem consumi-la na forma de
mercadoria.
A notícia de
tal morte era manipulada pelo performer que ora demonstrava tristeza com o
acontecimento e ora necessita vender a marca registrada gerada pelo tal fato,
pois sem tal tragédia a venda dos produtos não aconteceria. A fronteira entre o
real e ficcional se diluía ainda mais quando um performer[8] doava
jornais cuja primeira página estampava o rosto da menina morta, noticiando tal
fato. Os espectadores ora acreditavam na notícia, ora duvidavam, tentando
adivinhar se aquele acontecimento advinha da teatralidade ou do âmbito
real. Tendo uma pesquisa sobre a ótica sensacionalista,
“Transeuntes” visava mostrar que o real poderia ser colocado na ótica da
ficção, e também que a ficção poderia também ser montada como realidade, em um
jogo de encobrimento da verdade para o detrimento da verdade em si. A ideia de
propor um fio condutor pautado na tragédia fez o espectador querer participar
da ação, comprando souvenires da menina, deixando o performer realizar
demonstrações gratuitas sobre as potências dos produtos, entre outras ações.
Neste
aspecto, a morte violenta da menina
mostra como todos podem consumir e lucrar sobre tal acontecimento. Desde
os repórteres sensacionalistas até os representantes comerciais com seus stands
de vendas contendo fotos, camisetas e pôsteres da menina. A morte
torna-se, então, um “espetáculo” no sentido debordiano da palavra, cujos
desdobramentos operam diretamente ligados aos conceitos operativos de poder, do
dinheiro, totalmente vinculados ao controle do capitalismo contemporâneo.
Enquanto
a venda dos produtos era aquecida pela ação dos performers frente ao público,
outra performer[9] expunha
seu corpo ao chão, cobrindo-o com jornais, atraindo os transeuntes para seu
local de ação. Outro performer[10] do
grupo se aproximava, deixando uma placa com os dizeres: “estive com a menina
morta e me lembrei de você”, oferecendo ao público a possibilidade deste em
tirar uma foto ao lado da menina. A ideia era mostrar uma obra aberta em que o
espectador pudesse se aproximar, fazer uma pose ao lado da menina e receber,
posteriormente, em sua casa ou por e-mail, tal foto como outro souvenir. O
campo desta ação se mostrava disponível à contribuição do passante, fazendo com
que o espectador pudesse ser colaborador da obra, agindo sobre a mesma com seu
corpo, saindo da mera contemplação.
Com
isto, a frágil “menina” se tornou o fio condutor das ações do grupo
“Transeuntes” neste espaço em que espectador e artista configuraram uma troca,
um diálogo acerca da obra, em que o procedimento artístico era contaminado
pelas impressões do espectador, dando um caráter de uma ação que não se encerra
em si, mas que necessita do outro para dar continuidade à discussão. Com isto,
“Transeuntes” revelava a frágil vida noticiada incessantemente pelos meios de
comunicação, mostrando que todos nós podemos retirar um pedaço daquele corpo,
deixando esvair sua potência de vida para ser apenas mais uma memória, mas um
número noticiado em uma narrativa cotidiana de tragédia. Tal procedimento
artístico objetivou mostrar como a morte pode ser noticiada constantemente até
se tornar uma tragédia do outro, apenas alheia, na qual eu não tenho qualquer
relação.
CONCLUSÃO
Pensando
acerca da lógica de tradição e mudança do cotidiano das cidades, “URBANIDADES”
busca diferentes níveis de participação do espectador como condutor das ações
artísticas realizadas na cidade de São João del-Rei (MG) e em outras cidades
que o projeto se apresenta[11]. A ideia é construir
diversos contornos sobre a cidade, diferentes formas de vê-la, objetivando
ocasionar pequenas rupturas no movimento cotidiano, abrindo ligeiras frestas
sobre o olhar, sobre a cidade. Os discursos hierárquicos da sociedade
contemporânea, muitas vezes pautados na lógica de fluxo de mercadoria, são
diluídos, mesmo que momentaneamente, a partir dos traços, das forças artísticas
efêmeras que colidem sobre as noções sedimentadas de cidade. Cabe ao cidadão, que
caminha pelas ruas e por espaços públicos, decidir por agir juntamente à obra
artística ou não ser alterado por ela. Neste aspecto, ao ser interrompido por
uma ação, o transeunte pode continuar sua caminhada na condição inicial em que
se encontra ou se apropriar da mesma, trazendo seu corpo à obra para que este
modifique também o ritmo habitual da cidade.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1993.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte
e política (7ª ed.). São Paulo: Brasiliense, 1994.
BRETAS, Beatriz. Interações cotidianas. In: GUIMARÃES, Cesar; FRANÇA,
Vera (Orgs.). Na Mídia, na Rua: Narrativas do Cotidiano. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2006. (p. 29-42).
CARREIRA, André. Teatro de Rua - Brasil e Argentina nos anos
1980: Uma paixão no asfalto. São Paulo: Aderaldo e Rothscild Editores,
2007.
______. Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade. In: LIMA,
Evelyn Furquim Werneck (Org.) Espaço e Teatro: do edifício
teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2008. p.67-78.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer.
Petrópolis: Vozes, 1994.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997.
DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo:
Hucitec, 2003.
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização
reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista (UNESP), 1995.
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro
performativo. In: Sala Preta Revista de Artes Cênicas, n. 8, ECA/USP, p.
197-209. São Paulo: PPG Artes Cênicas – ECA/USP, 2008.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro
Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 440 p.
RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo:
Editora 34, 2005.
REWALD, Rubens. Autor Espectador. São Paulo, 2004. Tese
apresentada no Doutorado em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo.
XAVIER, VALÊNCIO. Rremembranças da menina de rua morta nua.
In:______. Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 39-59.
___________________
[1] Trabalho
apresentado na XII Semana de Extensão Universitária – SEMEX do XII Congresso de
Produção Científica e Acadêmica da Universidade Federal de São João del-Rei.
[2] Professor
Assistente do Curso de Teatro (UFSJ), coordenador atual deste projeto.
[3] Professora
adjunta do Curso de Teatro (UFSJ), vice-coordenadora atual deste projeto.
[4] Iolanda de
Lourdes é bolsista deste projeto, graduanda em Teatro pela Universidade Federal
de São João Del Rei.
[5] Luis Firmato é
bolsista graduando deste projeto, graduando em Teatro pela Universidade Federal
de São João Del Rei.
.
[6] XAVIER,
VALÊNCIO. Rremembranças da menina de rua morta nua. In:______. Rremembranças
da menina de rua morta nua e outros livros. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006. p. 39-59.
[11] Tais como Belém
(PA), Fortaleza (CE), Araguari (MG), entre outras.