Bem Vindo!

TRANSEUNTES

Criado em abril de 2012, o grupo de pesquisa"Transeuntes: Estudos sobre performance e Teatro performativo" foi formado a partir da necessidade de artistas em ampliar os estudos sobre as intervenções performáticas nas ruas. Em parceria entre Professores e Alunos do Curso de Teatro (COTEA) da UFSJ (Universidade Federal de São João Del Rei), o projeto consiste, entre outros pontos, em estudos teóricos sobre determinados autores que abordam o teatro nas ruas e em experimentações práticas que visam inserir o espectador transeunte na construção dos processos criativos, a partir das temáticas referentes às abordagens atuais. A pesquisa tem como principal objetivo investigar as propostas de estreitamento entre a cena contemporânea e o espectador transeunte nas ruas de São João Del-Rei, visando analisar a inserção do público como participante das ações performáticas, na busca de:

(...) Utilizar o ambiente urbano de maneira diferente das prescrições implícitas no projeto de quem o determinou; enfim, de dar-lhe [espectador-cidadão] a possibilidade de não assimilar, mas de reagir ativamente ao ambiente. (ARGAN, 1998, p. 219)

Os membros atuais do grupo Transeuntes são:

Professores - Ines Linke e Marcelo Rocco.

Alunos - Débora Trierweiler; Diego Souza; Diogo Rezende; Fernanda Junqueira; Gabriela Ferreira; Guilherme Soares; Halina Cordeiro; Henrique Chagas; Isabela Francisconi; Kauê Rocha; Nathan Marçal; Paula Fonseca; Rick Ribeiro; Tatiane Talita.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Reflexão sobre a visita a exposição ELLE: Mulheres Artistas na Coleção Pompidou

O Prazer é das Mulheres.
Pretendo relatar aqui minhas impressões sobre a exposição ELLE: Mulheres Artistas na Coleção Pompidou e para tanto usarei como base a visita á exposição realizada no dia dezenove de outubro bem como meu conhecimento sobre algumas artistas e suas respectivas obras.
A exposição, conhecida na França como expo-coleção, vem de encontro com o reconhecimento da mulher enquanto artista, quando esta deixa de ser tema, modelo para se tornar o fazedor. Não que as expressões artísticas masculinas que representaram a mulher sempre foram indignas, mas temos aqui um reconhecimento e identificação diretos. As obras, que fazem parte do acervo do centro Pompidou, trazem uma verdade sobre a criação da mulher em arte levantando diversos questionamentos sobre este papel. Todas as obras faziem parte da coleção do museu o que demonstra que  a importância associada ás artistas em manifestações e expressões artísticas talvez se deva mais ao desconhecimento do que de sua efetiva presença. Aqui não cabem artistas cuja bografias apresentem pseudônimos ou produções artísticas obscurecidas pelas personalidades ou visibilidade de seus amantes e parceiros. São elas, a partir de suas obras que nos demonstram que se não são comparáveis em números com os artistas homens, o são em importância nos movimentos e valores artísticos de suas obras. Seus espaços de atuação foram conquistados com trabalho e luta. Talvez por isso, como Frida recusem serem tratadas como sonhadoras.
Em seu “O QUADRO” a artista mexicana nos apresenta um auto-retrato em uma moldura típica de santos, muito comum em seu país. Os diálogos possíveis falam diretamente á questão do artista. Serão eles deuses? Santos? Mártires? O sofrimento de uma santa até chegar á beatificação podem também ser os dos artistas, ainda mais se forem mulheres. Em uma sociedade e classe machista Frida se impôs criando obras de uma verdade escandalosa. Pintou-se imóvel em uma cama de hospital e não exitou em traduzir em tintas na tela a dor de ver seu filho não nascido em um pote de vidro. A presença da artista na exposição fala mais do que a obra escolhida. Pertencente á coleção do centre Pompidou o que “O Quadro” traz são todas os sentimentos  e cores de Frida que não cabem neste tamanho mínimo mas estão sempre ali nas questões dos artistas. Bem como nas obras de Diane Arbus.
Fotografando o cotidiano e suas cerimônias a artista apresenta figuras do submundo, revelando sua existência e insultante presença. Estão ali a prostituta, a drag, o travesti. Estão ali o humano e a realidade das cidades que insistem em esconder o que elas mesmas comportam. Não cabe aqui o comedido esforço de Valérie Belim que tenta nos confundir, e assim atentar, para a artificialidade de nossa adoração pela imagem ideal. Cruelmente expostos vemos nas fotografias de Diane uma denúncia do que existe para além das galerias e espaços higienizados.
Presença também existe nas reproduções em vídeo das performances de Marina Abramovic. Ela fala da beleza da arte e do próprio artista trabalhando o limite do corpo, da dor e da exaustão. As possíveis leituras de suas performances mais recentes evidenciam como suas escolhas auxiliaram em seu crescimento como artista e como a absorção das técnicas ocorreram no interior de sua próprio fazer artístico. Seja dançando por horas, seja sentada em uma cadeira dentro de um museu, Marina consegue articular os elementos escolhidos com destreza incrível. Se as artistas como Maia Helena Vieira da Silva e a polonesa Alice Halicka comprovam como foram condizentes com os movimentos artísticos aos quais pertenceram Abramovic rouba a cena, instaurando uma presença sigular na arte da performance que engloba em grande parte mulheres artistas. Tal afirmação pode ser exemplificada com outros nomes da exposição.
Orlan, Valie Export, Ana Mendieta e Regina José Galindo são artistas que foram além das convenções do fazer artístico. Seja com intervenções cirúrgicas reais, seja colocando o corpo ao toque, apreciação e manuseio, todas se tornam obra. Sem seus corpos e presença física não podem existir. Ou o fazem apenas como memória em vídeo que se nos faz perder o encantamento e energia da hora da ação, nos permitem imaginar e contatar com as potências de cada proposta.
Muito potentes as fotos de Nan Goldin. Nelas me incomoda apenas as escolhas das projeções entre os casais homossexuais que, comparando com ás de héteros, trazem maior apelo pornográfico. Fiquei Interessado em saber mais sobre as relações da artista com as questões homoafetivas.
Extremamente potentes as articulações entre objetos relacionados ao universo feminino apresentados por algumas artistas. Destaque para Sigalit Landau que numa dança com bambolê de arame farpado, fala do sofrimento da mulher e suas obrigações. Do limite do alcance feminino imposto pela sociedade e da submissão das mulheres á diversas atividades em sua maioria não escolhidas. Sanja Ivekovic cortando a meia de seda que cobre seu rosto fala também dos riscos do feminino. Do constante perigo de ser mulher,  das especificações de atender a um ideal na maioria das vezes inquestionável. Sonia Andrade e Orlam também o fazem, mas se a primeira nos agonia pela modificação momentânea de sua figura, usando o buraco do brinco, a segunda vai além com modificações cirurgicas permanentes, em busca de uma beleza escolhida por outros que nem mais sabemos que não nós. Germaine  Richier usa um vaso para construir sua escultura. É a mulher utensílio. A casa que não sai da mulher que não sai de casa. Martha Rosler questiona também o lugar reducionista destinado a mulher com seus utensílios incrustados na escala doméstica. É preciso uma Guerrila  Girls para confrontar não só tais estruturas, mas o próprio museu, reivindicando uma participação feminina que vá além de meras modelos. Fico extremamente incomodado com o bicho carangueijo de Lygia Clark não poder ser manuseado. A troca entre o expectador e a obra, que só existe em seu sentido original a partir dos “estímulos”, fica prejudicada. Entendo a importância de conservação do original, mas uma solução poderia ser uma réplica para manuseio direto. Nestes momentos reflito sobre como o artista pensaria a curadoria de suas obras. Louise Borgeois jamais concordaria em saber que uma de suas aranhas está presa em uma sala envidraçada do MAM em São Paulo, ainda bem que aqui suas obras, se não podem ser toados, poder ser apreendidas de perto. Suas pinturas e bordados sobre papel falam da mulher e da delicadeza de cada existência. Da efemeridade da arte e do humano. Grande presença entre tantos nomes importantes e relevantes para o meio artístico.
Sendo assim podemos considerar que a iniciativa do centro Pompidou além de promover uma maior conscientização de outras instituições para a aquisição de obras relevantes para seus acervos cuja criação seja de mulheres coloca no centro das discussões a importância destas obras e de suas criadoras para a produção artística mundial. O CCBB de Belo Horizonte demonstra com a escolha desta exposição que pode oferecer mais do que momentos de “PRAZER” em labirintos especulativos sobre a vida de escritores cuja relevância de suas produções não são reveladas nem na escolha do material dos praticáveis.

Luís Firmato




sexta-feira, 18 de outubro de 2013

REGISTROS FOTOGRÁFICOS DIA 17.10.2013














































Exercícios 17.10.13

CORPOS EM EXERCÍCIO

A proposta de exercício de construção de cena de  Érika Camila e Taís Rosa baseada na cena de número 5 do pré-roteiro dramatúrgico escrito por Marcelo Rocco consistiu basicamente na utilização de três corpos de mulher que noticiavam acontecimentos trágicos. A primeira trazia o corpo coberto de jornais. Sua imagem remete ás experimentações realizadas pelo grupo de pesquisa no início do projeto nas margens do córrego do Lenheiro, no centro de São João del-Rei.
Figura1. Registro fotográfico. Experiment-ações, Transeuntes e Urbanidades , 2013,.
Fotografia de Luís Firmato

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Figura 2.. Registro fotográfico. Exercícios sobre pré-roteiro dramatúrgico. Transeuntes, 2013.
Fotografia de Igor dos Santos Oliveira.




Na ocasião Inês Karin Linke propôs se deitar sob a ponte e ser coberta com páginas de jornais sensacionalistas.. A ação fez parte de diferentes experimentos que pretendiam contribuir para o processo de construção da encenação performativa. Neste momento as notícias cobriam o corpo revelado apenas por alguns membros descobertos e por seu volume, na proposta da dupla as notícias saltavam do papel. O corpo morto tinha voz. Como em um instante de glória (?) teve sua voz devolvida e pode falar. Pode contar aos espectadores as condições que fora morta. Reconhecendo as limitações dos exercícios seria importante alertarmos para o fato do depoimento ser ou não em primeira pessoa. O corpo morto que fala, o faz de forma genérica, revelando diretamente o sofrimento de mulheres abusadas sexualmente e mortas? Ou é direto fornecendo os dados sobre a forma como esta mulher foi morta? A segunda mulher estava sentada em um banco, lendo seu jornal barato. A notícia de violência distoava do corpo construído. Seria este corpo em algum momento abusado. Era claro que ela  pouco se importava-identificava com a vítima. Seu distanciamento nos enoja e levanta a reflexão sobre nossa inação em frente a banalização e culto á violência. Ao consumo desenfreado da notícia como produto descartável. A mulher caída ao chão não lhe causa presença. A “morta” em sua imagem frágil e finda clama por reconhecimento da segunda. Esta lê o trágico, interessa-se pelo registro, mas pouco faz pelo corpo. Sua leitura poderá compactuar para o mantenimento  da violência? Seu aparente descaso, sua indiferença, poderá, como na personagem de A Cruz de Giz, de Bertold Brecht levá-la á insegurança? Quando sua condição se equipara com a da vítima imóvel estirada ao chão? A diferença das ações e condições das personagens surgem também através de sua disposição. Em um crescendo. Do plano baixo ao plano alto elas se revelam em ação. Da imobilidade, do sentar desinteressado chegamos ao deslocamento. A terceira mulher, subverte a lógica. Desloca-se pelo espaço. Suas ações criam um outro espaço. Da relação frontal somos inseridos por seu fio.  Somos lançados dentro de sua história. Incluídos nela, emaranhados nela. Cúmprices, ligados por um frágilfio de  barbante, somos abusados em nosso conforto de espectadores e forçados a sermos testemunhas do depoimento cruel. Narrando em tempo real seu abuso oferece-nos um paradoxo. Somos nós que nos imobilizamos. Parados atônitos: ouvimos. Somos entrelaçados por sua narrativa, seu depoimento. Descobrimos aos poucos seu destino. O abuso sofrido em outro espaço pede ao espectador imaginação. Suporte para que em cada um surja uma história diferente. Nada podemos fazer por ela. Nada podemos fazer a não ser refletir sobre os abusos que neste momento podem estar acontecendo. Contextualiza-se aqui a condição de centenas de mulheres que são, de forma física ou psicológica, no Brasil.
Conforme o mapa da violênica publicado pelo institudo Sangari em 2012 o número de mulheres assassinadas em 30 anos cresceu em 217,6%. Se o exercício proposto não dá voz a todos as ações, esta última mulher nos coloca próximos do horror que os dados da pesquisa apresentam.
O segundo exercício, proposto por Branca Marília e Luciana Oliveira, também trabalhou com a ideia de corpos em um só corpo. Dentro de um espaço determinado deveríamos buscar o corpo, comportamentos e ações de pessoas em uma festa. logo após éramos convidados a estruturarmos nossos corpos como jornalistas dando uma notícia sobre violência. Uma vez feitos complexificamos já que  deveríamos falar de notícias de estupros e violência física contra mulheres sem afetar o corpo em festa. Os envolvidos encontraram dificuldade em realizar o exercício. Algumas ideias e propostas foram experimentadas. Como a cena em que um casal fazia sexo e um deles dava notícias que, em um primeiro momento, nada tinham de relação com o ato apresentado. Consideramos que a ação precisa ser trabalhada e pode incorporar-se na encenação performativa já que é potente e trata  em sua realização da banalização da violência e do sexo.

Luís Firmato

Referência
disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_mulher.pdf visualizado em 18 d outubro de 2013 ás 16h30.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

EXPERIÊNCIAS TRANSEUNTES – O CORPO-ESPERA NA CIDADE



INTRODUÇÃO
Na contemporaneidade, o cotidiano das cidades está entrelaçado por diversas narrativas transmitidas como resultados das interações entre as pessoas. Os efeitos de tais interações interferem diretamente na produção do conhecimento e nas transformações sociais. No dia-a-dia, os fragmentos que compõem o tecido da memória são gerados pelo encadeamento dos discursos da cidade, em suas diversas esferas.Walter Benjamin (1994) descreve que a experiência de narrar é uma forma artesanal de comunicação, partindo das experiências pessoais do narrador. Partindo desta premissa, pode-se dizer que as narrativas circulam entre os grupos e redes sociais, ressignificando o cotidiano através das contextualizações dadas pelos seres que se comunicam. Como compreende Mikhail Bakhtin (1993), as narrativas são dialógicas, permeadas por fragmentos de discursos que articulam falas sociais em sintonia ou em contradição, sendo reconstruídas a partir de diferentes posicionamentos. Com isto, pensar o cotidiano como lócus de discursos contrários, de enfrentamento e de fricção de idéias, possibilita entendê-lo como um palco privilegiado de experiências com sentido renovado, em que o tempo presente acolhe o saber multicultural e multifacetado.
Sendo assim, as narrativas cotidianas compõem um conjunto de experiências que se agrupam ou se distinguem, possibilitando a formação de diferentes ideologias, em um fluxo ininterrupto de vida (CERTEAU, 1994). Esta complexidade de discursos articula processos de construção de identidades distintas, abalando convenções vigentes e estruturando novos laços de socialização. Tais laços constroem no indivíduo diferentes perspectivas, confiança nas relações, novos pontos-de-vista e demais elementos constituintes da identidade, que, por conseguinte, tem um caráter processual, dado ao longo dos esforços de construção autônoma (HALL, 1996). Então, como pensar em narrativas artísticas dialogando com as narrativas das ruas, criando possibilidades de novos discursos a partir do confronto entre a obra e o espectador transeunte? As intersecções potencializam os posicionamentos dos seres no mundo, gerando consciência sobre os processos sociais. A ocupação de espaços públicos e a interrupção do fluxo cotidiano questionam e pontuam questões sociais, na busca da “participação [do espectador] como auto-experiência e auto-reflexão” (LEHMANN, 2007, p. 171). Sendo assim, pode-se dizer que a configuração de interrupções do fluxo cria situações multifacetadas de aproximação com a vida.
Com isto, a suspensão do curso dos pedestres como uma tentativa de efetivar as diversas relações corporais, sensitivas visa mobilizar o espectador a atentar não só para a sua presença, mas para outras pessoas, coisas, espaços ao redor da cidade, em múltiplos focos de atenção. Mediante a este ponto, o teatro contemporâneo passa a pensar na construção de discursos desafiadores ao espectador, possibilitando a ele fechar a obra.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Reflexões sobre as experimentações do dia 10.10.13.


COMENDO CRUA A MENINA MORTA NUA

Pretendo discorrer sobre os exercicios experimentais do processo de construção da encenação performativa, realizado pelo Transeuntes - Grupo de Pesquisas em Performance no dia 10 de outubro de 2013 no Campus Tancredo Neves - UFSJ.
Antes de ser uma análise sobre os exercícios de propostas de cena realizadas a partir do texto citado acima, bem como das vivências anteriores do grupo e dos desejos de cada proponente, pretendo aqui provocar. Nos provocar, Me provocar. Provocar e assim refletir sobre as potências de cada exercício proposto e sobre as possibilidades que cada ideia trás.
De início cada espectador  recebeu  um jornal cujo conteúdo é recheado de histórias trágicas e desfechos violentos. Os jornais “pinga-sangue” eram a moeda. Notícias trágicas possibilitavam a entrada para as cenas-exercício. Um corredor leva á sala cheia de entulhos, jornais. Não deveriam estes conter notícias da menina morta? Não se pode  aqui antecipar em notícias a morte da menina? Outra morte, também de uma jovem, veiculada na mídia pode contribuir para as reflexões no processo.
Em 1985, Omayra Sanchez uma jovem de treze anos, ficou presa nos entulhos deixados pela erupção do vulcão Nevado del Ruiz, na Colômbia. Incapaz de ajudá-la os moradores do local nada puderam fazer a não ser se juntarem a ela a caminho do fim trágico suspeitado por todos. Após 60 horas presa e devido a impossibilidade de ser removida por falta dos recursos necessários, Omayra morreu em frente aos seus conterrâneos, jornalistas e fotógrafos. O caso levantou uma grande discussão sobre a ética jornalística.  Frank Fournier, premiado por fazer uma das últimas imagens da menina, alega que seu trabalho teve a intenção de denunciar o absurdo da situação assim como de ajudar a evitar ocorrências análogas. Desinformados sobre os efeitos positivos ou não de tais coberturas midiáticas, temos aqui um momento de reflexão. Assim como a morte de Omayra era percebida, já que as tentativas de retirá-la ofereciam o risco de parti-la ao meio, não o era a da menina morta nua? Não é esse o desfecho de toda menina que na fala de Gil Gomes é causado pela “[...] falta de oportunidade, de estudo, de tudo.” (XAVIER, 2006, p. 48) Podemos escancarar sua morte inevitável, seu destino fatal com seu rosto em tudo. A imagem da menina em todos os lugares do mundo de terror em que ela não mais está. Deixemos a menina morta e crua desenterrada, sem descanso. Se não sabemos seu nome reafirmaremos sua presença. Até que ela seja suprimida, enterrada pela banalização. Assim talvez consigamos trabalhar a exposição da violência, da morte a partir dos diferentes usos da notícia em jornais impressos pelo chão. Mas não só.
Temos também o jornalismo sem escrúpulos ou medidas éticas. O vencedor é o espectador que no conforto do seu lar - equipado indiscutivelmente pelos produtos mostrados nos intervalos deste mesmo telejornal - assiste a tudo. Vê tudo, mil versões do mesmo. Notícias em massa, fluxo. Cada informação complementa, distoa, diverge, contradiz a outra. Cada notícia produto, melhor pensado. Se Dionísio embriagava todas as classes, a mídia também o faz. Dos programas inspirados em jornais norte-americanos, aos populares com apresentadores  excêntricos tudo é a notícia. A má notícia. A tragédia, a morte. Nosso fim descancarado, revelado, como qualquer desenho infantil. Para em um só instante surgir o comercial! Paz no mundo de horror. Arauto de esperança em um mundo de total desequilíbrio. Só a compra é exata no mundo incerto. Compre e fique linda, compre e pague com o cartão de crédito. Nada de sair de casa e se arriscar nos parques de horror. Compre do seu sofá, com um só clique, e parcele em milhões de vezes, pague quando puder, quando quiser! Compre tudo, adoce sua vida.
Em meio aos corpos sujos, mortos esquecidos. Em meio á morte forjada, forçada, temos o comercial. Adoce sua vida com a bala rosinha! A vida é doce para quem chupa. O comercial e sua lógica invertida, pervertida. O sexo insinuado pelos movimentos e vozes, o ridículo sendo oferecido como regra. Tudo a serviço da compra. Se engorda, se faz mal, se é ruim, quem se importa? Está na moda! Faz sucesso. Só se é bom, só se conquista se chuparmos a bala. Só chuparemos e seremos chupados se chuparmos a rosinha, a bala rosinha. Os doces que a menina vendiam para sobreviver levam ao abuso, do abuso a fuga da fuga para o segundo exercício.
No exercício proposto pela Sabrina Mendes o brinquedo inocente levou ao abuso, ao estupro. A descoberta do trajeto do carrinho que leva a descoberta do corpo do outro, só que aqui sem seu consentimento. Amarrada, presa, a menina é abusada, gritos de horror se misturam a lambidas, desejo e pânico. Uma jovem é abusada e ninguém faz nada, imóveis, somos cumprices?  Como provocar o outro a se aproximar-identificar com o abuso sofrido? Como provocar no outros as sensações vividas pela menina de forma simbólica? Elas precisam ser simbólicas? Para a proponente não.
Os homens de rostos cobertos levam os espectadores vendados para não se sabe onde. Na sala de tortura são abusados com paus, gritos. Muitos abusos sofridos pela menina agora são experimentados no próprio corpo. Do abstrato ao concreto. Do ver para o sentir. Qual experiência é mais completa? Uma enfraquece o sentido da outra? Somam-se? Paga-se pelo silêncio e omissão na sala anterior? O inferno vem em forma de suspeita. Do não se saber de onde e como virá as torturas. Uma espectadora se sente mal. Deixados lá chegam a conclusão de que o exercício acabou. Apenas esse.
Os proponentes seguintes vão para o externo. Mesa posta, cena idem. Na mesa o casal perfeito, movimentos exagerados revelam a família perfeita. Comem notícias de estupros e assassinatos. Lêem rótulos de alimentos indigeríveis. Vivem em meio ao caos sem se importarem. As noticias de corpos ganham corpos. Corpos de notícia. Trocam provocações revezam-se nas notícias de maravilhosas tragédias e catastróficos produtos. A notícia não poderia se infiltrar em maior medida? Corpos na mesa, restos nos pratos. Como a notícia e bebo esse sangue. Como a menina que não matei, mas me alimenta.

Luís Firmato

REFERÊNCIAS
XAVIER, Valêncio. Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Registros das experimentações 10.10.13

Exercícios experimentais do processo de construção da encenação performativa, os estímulos vieram  das leituras do livro Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros, de Valêncio Xavier, bem como das vivências de exercícios anteriores.

CENA I - 
Proponente: Luís Firmato e Igor Santos Oliveira
Colaboradora: Sabrina Mendes




CENA II - 
Proponente: Sabrina Mendes
Colaboradores: Igor Santos Oliveira, Júnio Carvalho, Luís Firmato e  Pedro Mendonça.






















CENA IV - 
Proponente: Júnio Carvalho e Pedro Mendonça
Colaboradores:  Igor Santos Oliveira, Luís Firmato e Sabrina Mendes.


















quinta-feira, 15 de agosto de 2013

www.transeuntesperfoemance.blogspot.com

O INFORME E A SOMBRA EM VALÊNCIO XAVIER
Fernanda Valim Côrtes Miguel[1]
Mayra Helena Alves Olalquiaga[2]   
Marcelo Eduardo Rocco de Gasperi [3]

Segundo Baudrillard, paradoxalmente, o estar em cena exageradamente, o excesso de exposição (quando tudo é cruelmente visível) leva ao vazio[4]. O livro Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros, de Valêncio Xavier, explora esse excesso de exposição do sexo, da violência, do corpo e da morte. A escrita informe de Xavier, entrecortada por fotografias, desenhos, embalagens de balas, reportagens de jornal e bilhetes recebidos pelo autor, lembrando as estratégias de comunicação utilizadas pela performance art, traz um cotidiano terrível e (as)sombroso, mergulhando o leitor no grotesco da vida urbana, onde mistérios jamais são elucidados, desfechos jamais dados. Os contos de Valêncio Xavier se apresentam de uma maneira que escapa ao familiar, surpreendendo nele o estranho e o sinistro.
Desconforto, incômodo, angústia e melancolia são palavras que bem descrevem o projeto literário de Xavier. No conto que dá título ao livro, nos tornamos espectadores vivos da história-fragmento que recupera a morte: um assassinato ocorrido na década de noventa, em um parque de diversões de Diadema, Grande São Paulo, explorado de forma sensacionalista pelos veículos de comunicação brasileiros da época. A vítima em questão é uma menina de rua, de apenas 8 ou 9 anos de idade, perversamente violentada, cujo corpo é encontrado nu dentro de um caixão do trem-fantasma do parque. O evento vai sendo recuperado pela narrativa espe(ta)cular de um passado factual trágico, propositalmente invocado através de jogos de alternâncias, avanços e recuos cronológicos, memórias e reminiscências da dor, da feiúra e da morte.
Aos poucos, as imagens vão ganhando corpo e sentido perante os olhos do leitor/espectador: recortes de notícias de jornais recuperam informações diferentes, nem sempre precisas, sobre o caso policial-detetivesco, em uma narrativa que se aproxima cada vez mais das narrativas de ficção e de mistério típicas do século XIX, como as de Conan Doyle e Allan Poe, também fortemente marcadas pelo jogo ficção/realidade. Locuções sensacionalistas do apresentador Gil Gomes tentam cobrir o caso do crime bárbaro. Fragmentos de chamadas de estúdio para outras notícias televisionadas na época, o bilhete de um pedinte, entregue ao próprio Valêncio Xavier no semáforo de uma avenida de São Paulo, informações sobre o rendimento da caderneta de poupança, sobre o preço de banca dos jornais e do pãozinho de 50 gramas, auxiliam na composição do cenário de uma época, denunciando os contextos político, econômico e social de uma sociedade e instituindo o “pano de fundo” que poderia justificar - apesar de não o fazer - parte da sinistra trama. Esse tratamento da morte da menina em imagens superpostas chama atenção para os deslocamentos possibilitados pela escrita valenciana, na qual “o lixo – o sensacionalismo, a crueldade – é nosso.” O que Valêncio Xavier faz é “reciclá-lo com um refinamento vindo em grande medida desta duplicação limiar – o fato e seu relato, a brutalidade e sua representação”[5].
Neste jogo de representação, os personagens, de maneira geral, não possuem nomes ou qualquer traço que os individualize ou os identifique. Assim, embora se fale exaustivamente da menina morta nas reportagens e roteiros de programas de TV, como o Aqui Agora, que entrecortam o texto, jamais descobrimos quem ela é. A escrita de Xavier não nos possibilita identificar em seus personagens quaisquer subjetividades distintas, evidenciando “uma crítica à banalização da vida na sociedade contemporânea, que reduz a complexidade psicológica do ser humano em personagens-tipo”.[6] E como a menina jamais adquire uma individualidade, a pergunta que o conto parece fazer é, será que realmente queremos saber dela ou apenas consumir a notícia de seu estupro e sua morte, para logo nos esquecermos?
A menina jamais é identificada. Embora possamos ver seu rosto, jamais vemos seus olhos, que estão sempre cobertos por uma tarja preta. Explorada sexualmente e depois pela imprensa para vender uma notícia e, finalmente, por nós, que consumimos sua história, ela jamais nos fita de volta. Em seu breve estudo da fotografia, Roland Barthes trata o objeto fotografado como um Spectrum, palavra que “mantém, através de sua raiz, uma relação com o ‘espetáculo’ e a ela acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto”[7]. Para Barthes, ao ser fotografado, o sujeito não é mais sujeito nem objeto, mas um sujeito que se sente tornar-se objeto, uma micro-experiência da morte, um verdadeiro espectro. O sujeito torna-se todo imagem, a morte em pessoa, e os outros o desapropriam de si mesmo com ferocidade. Ao incluir em seu texto a foto da menina, Xavier parece brincar com esse traço da fotografia, e seu espectro passa a nos assombrar.
Ainda segundo Barthes, toda fotografia é contingente e só pode significar, só pode visar a uma generalidade, assumindo uma máscara, tornando a face fotografada o produto de uma sociedade e de sua história. Ao inserir uma foto jornalística, portanto meramente ilustrativa, em um texto literário, Xavier encena esse potencial de significação da fotografia, chamando a atenção para ela e dando-lhe o mesmo peso da palavra.
O uso de fotografias e da outras linguagens no conto da menina morta, e nos demais contos do livro, rompe o limite seguro e aceitável da literatura tradicional, dissolvendo-o em um estreitamento tênue e obscuro com o caráter real do cotidiano da sociedade brasileira. Assim, o duplo sentido entre o ficcional e o real dado por Xavier atravessa as fronteiras literárias para a configuração dos elementos constituintes da performance.
Lehmann (2007) afirma que os conceitos performáticos têm como um dos eixos norteadores a busca da ação real, em contraposição ao domínio das ações simuladas. Estabelecendo um paralelo ao universo de Xavier, Rremembranças possui em seu enredo um processo gradativo de transformação ao decorrer da obra, em que o caráter do real é dado a todo instante, diluindo a barreira entre ilusão e realidade. Este entrecruzamento é feito principalmente pela característica da linguagem jornalística que Xavier manipula, visando estetizar a narrativa de tragédias cotidianas, banalizadas pelos jornais televisivos, virtuais e impressos. Desta forma, o objeto de comunicação midiático é visto pelos bastidores, formulando um sentido metalingüístico entre a obra e o acontecimento real
Vivemos um momento em que o espalhamento da teatralidade e da atitude performática estendidas à mídia, ao cotidiano, está em permeação constante com o mundo espetacularizado, desfronteirizado (DEBORD, 1997, p. 27).
Manipulando as notícias sensacionalistas sobre um ato de violência urbana, Xavier cria estados performáticos de ruptura e continuidade textual, re-significando o conteúdo da notícia jornalística em“ uma obra de fronteira entre o factual e o ficcional” (ROCHA, 2009).
Tendo um olhar apurado sobre tal ótica sensacionalista, Xavier revela que o real pode ser dado como ficção e vice-versa, em um intenso jogo de luz e sombras, em que algo se revela e algo se esconde a todo o instante. Desta maneira, o leitor não consegue perceber com clareza os pontos referentes à ficção e ao real, bem como o caminho a seguir. E a linguagem híbrida, construída a partir da colagem textual “motiva questionamentos a respeito da autoria, da relação entre realidade e ficção e da subjetividade como interferência natural, na escrita de qualquer tipo de texto”(KOBS, 2010).
A colagem textual na obra de Xavier, mesclando informações de noticiários televisivos, verbetes de dicionários, elementos iconográficos e a linguagem da oralidade, caminha em contraposição a um texto linear, pois possibilita diferentes versões sobre o enredo e uma leitura aberta e processual. Com isto, o conto não leva o leitor a um local seguro e claro sobre os acontecimentos. Ao contrário, o autor propõe um jogo de quebra-cabeças a ser montado e digerido, aumentando as potencialidades do reduzido discurso dado aos jornais que, por sua vez, buscam o apelo à tragédia cotidiana para alavancar o ibope. 
Assim, o conto se mostra aberto à contribuição do leitor, que é convidado a dialogar com este, refletindo, sintetizando e sendo contaminado pelo teor da obra. Com isto, ele deixa de ser mero espectador receptivo da obra para tornar-se colaborador dela, elaborando significados maiores que o fio condutor que o livro estabeleceu. Desta maneira, Xavier reapresenta o fato e sua representação pela mídia, tornando-o um suporte para a exposição de suas escolhas estéticas e de seu projeto literário particular.
A narrativa da morte da menina denuncia o processo de consumo e de esquecimento que marca a vida nas grandes cidades, o consumo de vidas, da miséria alheia, da morte e da tragédia alheia, que logo cederá lugar a outra tragédia, e depois a outra, a outra, a outra. Ao lado da primeira foto da menina, Xavier coloca a mesma manchete de jornal anunciando o crime bárbaro repetidas vezes, fazendo com que sua história perca qualquer senso de individualidade. Novamente o texto parece nos confrontar com mais perguntas, as quais não tenta responder. São quantos os meninos de rua no Brasil? E sendo tantos, é possível nos compadecermos com eles? É possível realmente enxergá-los?
As imagens do local do crime exploradas no conto dão a este ainda uma camada de ironia, cuja crueza espelha a brutalidade do mundo retratado. A menina entra no jogo, “O mundo do Terror”, pela “Entrada dos corajosos”, mas jamais sai viva pela “Saída dos sobreviventes”. No jogo de luz e sombra acionado pela ironia valenciana, a ideia do parque – que remete à diversão, brincadeira – é subvertida quando o terror se torna real. Por outro lado, a imagem ausente da narrativa, a do corpo morto, que também institui a ausência da menina do mundo dos vivos, torna-se mais assombrosa na imaginação daqueles que rememoraram sua curta história do que qualquer tentativa explícita de representação através de índices iconográficos.
Os fluxos imaginários construídos por Xavier, a partir de imagem das memórias de um acontecimento, partem do destaque de elementos performáticos que nos são sugeridos a partir da leitura do conto, e acabam por conduzir à constituição de determinados núcleos de significado os quais, com base em Derrida (2008), poderiam ser lidos como “rastros de rastros” que nos indicariam pistas para o mapeamento e constituição de certas memórias “do horror” evocadas: a matéria sobre a morte nos conduz à fala de Gil Gomes, que nos conduz à fala de outro jornalista, seguido de um intervalo comercial, o signo de uma numeração aparentemente estranha (= - 17), à foto do parque de diversões, ao horário da suposta morte (onze e meia da noite), à imagem de um relógio que marca justamente a sombria meia-noite, a indicação do nome do suposto assassino (Nena), que por conseguinte nos leva ao rastro da definição da palavra “Nênia” (canto fúnebre, canto triste, canto mágico, canção infantil). Em seguida, somos guiados ao rastro da imagem da anatomia de um pé, jogo metonímico engenhoso, dado que teria sido esta a primeira parte revelada daquele corpo infantil. Portanto, os rastros aparentemente caóticos e dispersos acabam por nos conduzir a teias de significados coerentes e a certas filiações históricas e ficcionais. O termo “rastro” aqui mobilizado possibilita um duplo sentido, já que além de ser tomado a partir da noção derridiana, ele também pode ser compreendido indicando um sentido de vestígio, marcas visíveis ou efeitos de sentidos que partiriam do texto literário. Desse modo, restaria a questão sobre quais deles deveriam ser mostrados, evidenciados, e quais teriam sido apagados, ocultados (“Apaguem as pegadas”). O fato é que, assim como a imagem de um vagalume ou de um abajour, ora aceso ora apagado, aqui tanto a luz quanto o apagamento parecem sugerir um resgate de memórias e reminiscências, propondo uma reflexão sobre o que se diz e o que se deseja dizer ou o que se vê e o que se deseja ver (ou ocultar).
A escrita performática de Xavier e seus “rastros de rastros” também nos levariam a determinadas práticas socioculturais que são elementos significativos mediadores entre ficção e realidade, e é justamente por isso é que elas poderiam ser aqui tomadas como espécies de faróis que, vez ou outra, lançariam luz e iluminariam certas direções, indicando quando estaríamos nos aproximando ou nos afastando das rotas traçadas.
Derrida afirma não existir “em toda parte, a não ser diferenças e rastros de rastros” (2001, p.32). Nesse sentido, Ester Heuser comenta de maneira esclarecedora a noção criada pelo filósofo:
O termo rastro (trace) é usado por Derrida para pensar a estrutura de significação em função do jogo das diferenças que supõe síntese e remessas que impedem que um elemento esteja presente em si mesmo e remeta apenas a si mesmo. Tanto na ordem do discurso falado, quanto do discurso escrito qualquer elemento que funcione como signo remete a um outro elemento, o qual, ele mesmo, não está simplesmente presente. Ou seja, cada termo traz em si o rastro de todos os outros termos que não ele próprio (HEUSER, 2008, p.59).

            Fernando Machado Silva propõe que “os rastros são ainda pedaços de vida depois da morte, não nos indicam apenas a presença defunta de um corpo, podem mesmo ser um suplemento de uma outra vida, um outro corpo, uma outra obra de arte” (2009, p.114).
Parece-nos que este uso narrativo deslocado, como esboçado anteriormente, criado na montagem do conto, bem como seu apelo documental e imaginativo, criaria a própria noção do desvio e do informe, afinal, “de que modo ler as Rremembranças quando o sentido que produzem não é dissociável do estranhamento causado pelo fato que recuperam?”[8]. Residiria justamente aí, nesses jogos de cena, jogos de linguagem e processos metonímicos, uma força expressiva e intensa que retomaria o embate sobre o estatuto da verdade, revelando-nos um certo teor testemunhal[9] da ficção de Valêncio Xavier, pois a narrativa recupera vozes de sujeitos que nunca tiveram a chance de se pronunciar e testemunha memórias da violência e de sua espetacularização. Não se trata do próprio sujeito narrador de sua história de trauma, mas da própria narrativa que reflete, como num jogo espectral, a questão da história e da ficcionalidade e da construção estética da ficção.
Os temas da sexualidade, da violência e da morte, explorados por Xavier na história da menina morta, são também explorados nos demais textos que compõem a coletânea. No conto que abre o livro, tudo se passa em um cinema “bem vagabundinho”. O personagem chamado apenas de Veado começa a masturbar o homem sentado ao seu lado, e de repente sua cabeça simplesmente cai em seu colo. Enquanto O Veado grita, sendo logo preso pela polícia, o corpo do homem sem cabeça sai andando despreocupadamente do cinema. Do Veado, sabemos depois apenas que sua história acaba em uma cela com outros presos, e que “acaba mal”.
No conto seguinte, “O barqueiro da morte” (supostamente uma história verídica), um casal de idosos tenta sair de sua casa em um bairro pobre de Curitiba, fugindo de uma enchente. Só os conhecemos por Velho e Velha. Antes mesmo de a água encher a casa, a mulher começa a tossir sangue. Pobres, moradores de um lugar em que o esgoto da cidade é despejado, a última imagem do conto nos dá uma dimensão de sua insignificância, toda sua existência é resumida na única coisa que resta, uma figurinha das Balas Zequinha. As Balas Zequinha eram tradicionais em Curitiba e em cada embalagem estava esse personagem, o Zequinha, em uma atividade diferente. O Velho havia conseguido a mais difícil, Zequinha viúvo, o que dá ao final do conto também um senso de humor bastante negro. Em cenários como o cinema vagabundinho, o parque de diversões em Diadema e no bairro pobre de Curitiba, sexo, violência e morte são as únicas experiências possíveis, nas quais a racionalidade e a redenção não têm lugar ou função. E, desta forma, podemos dizer que frases como a que fecha o conto “7 O nome das coisas”, “e o nada” ressoa por todo o livro. A morte, em especial, surge como algo atroz, macabro e violento e, ao mesmo tempo, prosaico, o que aumenta nosso desconforto durante a leitura dos textos. O lado sombra da experiência humana, o corpo, a sexualidade, a morte e a violência, a sombra do horror, repercutem nos contos de Valêncio Xavier, através de uma estratégia de escrita informe, escrita da sombra.



REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A câmera clara. Notas sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

DERRIDA, Jacques. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

HEUSER, Ester Maria Dreher. No rastro da filosofia da diferença. In: Derrida & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 1ª Ed., 2008.

NEVES, Ligia Amorim. Um estudo sobre a escrita literária de Valêncio Xavier. Acta Scientiarum: Human and Social Sciences, Maringá, vol. 8, n. 1, p. 37-46, 2006. Acesso em 17 mai. 2011.

ROCHA, Reuben. Ficção-Verdade: Fronteira semiótica na montagem narrativa de Valêncio Xavier. Revista Rumores, São Paulo, vol. 1, set./dez. 2009. Disponível em: www.usp.br/rumores. Acesso em 17 mai. 2011.

SILVA, Fernando Manuel Machado Arnaldo Pinto da. Da Literatura, do Corpo e do Corpo na Literatura: Derrida, Deleuze e Monstros no Renascimento. Dissertação de Mestrado. Universidade da Beira Interior, 2009.

XAVIER, Valêncio. Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006


[1] Doutoranda em Literatura Comparada pela UFMG.
[2] Doutoranda em Literatura Comparada pela UFMG.
[3] Doutorando em Artes Cênicas pela UFMG.
[4] Baudrillard apud Neves, 2006, p. 40.
[5] Rocha, 2009.
[6] Neves, 2006, p. 43.
[7] Barthes, 1984, p. 20.
[8]  Rocha, 2011.
[9]  Termo que parece ter sido cunhado por Márcio Seligmann-Silva.