Bem Vindo!

TRANSEUNTES

Criado em abril de 2012, o grupo de pesquisa"Transeuntes: Estudos sobre performance e Teatro performativo" foi formado a partir da necessidade de artistas em ampliar os estudos sobre as intervenções performáticas nas ruas. Em parceria entre Professores e Alunos do Curso de Teatro (COTEA) da UFSJ (Universidade Federal de São João Del Rei), o projeto consiste, entre outros pontos, em estudos teóricos sobre determinados autores que abordam o teatro nas ruas e em experimentações práticas que visam inserir o espectador transeunte na construção dos processos criativos, a partir das temáticas referentes às abordagens atuais. A pesquisa tem como principal objetivo investigar as propostas de estreitamento entre a cena contemporânea e o espectador transeunte nas ruas de São João Del-Rei, visando analisar a inserção do público como participante das ações performáticas, na busca de:

(...) Utilizar o ambiente urbano de maneira diferente das prescrições implícitas no projeto de quem o determinou; enfim, de dar-lhe [espectador-cidadão] a possibilidade de não assimilar, mas de reagir ativamente ao ambiente. (ARGAN, 1998, p. 219)

Os membros atuais do grupo Transeuntes são:

Professores - Ines Linke e Marcelo Rocco.

Alunos - Débora Trierweiler; Diego Souza; Diogo Rezende; Fernanda Junqueira; Gabriela Ferreira; Guilherme Soares; Halina Cordeiro; Henrique Chagas; Isabela Francisconi; Kauê Rocha; Nathan Marçal; Paula Fonseca; Rick Ribeiro; Tatiane Talita.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Por Luiz Carlos Garrocho (grande mestre)



Retorno sobre a tese de Marcelo Rocco, Entre a Metrópole e a Cidade Sagrada: uma análise comparativa entre o Obscena – agrupamento independente de pesquisa cênica e o grupo Transeuntes. Agosto de 2016

Nesses dias em que estive lendo a sua tese, me veio à mente o que Maurice Blanchot chama de conversa infinita. Um processo contínuo de reverberações que se que a escrita prolonga e que não solicita ser a última palavra. A companhia de suas questões e relatos me provocou, me fez rever conceitos e práticas – enfim, me fez pensar. Portanto, volto agora, nesse lugar, para lhe dizer como isso vem se dando – ou seja, a minha leitura. Que a conversa, então, possa ser mesmo infinita. Mais uma vez, agradeço pela companhia de sua escrita e pelo convite e a oportunidade de fazer parte da banca de doutorado de sua tese.
Dando prosseguimento, Marcelo, eu me vejo diante de um material denso, consubstanciado por aquilo que você descreve como “experiências estéticas que caminham além do domínio mercadológico das cidades e da privatização dos espaços públicos, propondo experiências de estreitamento com o espectador no cotidiano das cidades”. Material este que vem precedido e acompanhado por um leque bem amplo de conceituações, tanto na base das leituras realizadas pelos coletivos, quanto na sua pesquisa acadêmica mesmo.
Vejo também um artista da cena e um professor que, com seus alunos e alunas, parceiros e parceiras de jornada, se recusa a aceitar como dado e definitivo o lugar prévio da experiência artística -  do sentido e sentidos que dela emergem – naquilo que se consubstanciou como espaços destinados a apresentação artística.  Os Coletivos Obscena, de Belo Horizonte, e Transeuntes, de São João del-Rey, objetos da sua investigação, são exemplares nessa insistência em cultivar essas práticas espaciais e performativas, essa busca por lugares outros para a arte.
Pois que as ruas e os espaços públicos da cidade não são apenas alternativos aos lugares consagrados. Muda a natureza do que vem a ser uma cena, muda o sentido do encontro com o qual se nutre e se efetiva. O acontecimento é outro, pois que não se trata de abstrair o ambiente para que ele se dê – muito pelo contrário. Mas não se trata de uma ambiência qualquer: são espaços públicos, que você escolheu como arena de experimentação. Portanto, vejo pelos seus relatos, que as apropriações e maestrias adquiridas no campo da cena se validam nessa região do inseguro, do instável e do efêmero que são os espaços públicos das cidades. Se a cena já é efêmera por natureza, nas condições colocadas pela sua investigação elas se mostra igualmente aberta ao risco e a ter de se efetivar com o outro. Visto que, entre outros fatores, o seu espectador habita também o temporário: ele não está previamente definido como tal e poderá a qualquer momento, como você mesmo diz, continuar seu translado ou, até mesmo, interromper, intervir e modificar o que está em curso. Essa a lição primeira dos espaços da rua, quando a cena se permite a uma desfronteirização dos espaços do artista e do espectador, como você mostra.
Logo de saída, você traz para o campo da discussão, a noção de intervenção urbana, a fim de expor esse território outro das artes. Na qual elas não se limitam a se apresentar nas ruas, como visto a pouco. Que você define, na Introdução, como possuindo as características da heterogeneidade, do processo e do aberto. Que “desestrutura momentaneamente o olhar prévio dos sujeitos que observam e/ou atravessam as intervenções”. E trazem, ainda e junto a isso as, seguintes características, como você mostra: a) “permitem novos e pequenos mapeamentos dos espaços públicos”; b) se dão “em meio aos elementos constitutivos do cotidiano” e c) proporcionam uma “reconfiguração momentânea da paisagem urbana”.
Tomo essas características que você aborda com precisão e pertinência, em termos de linhas de força que compõem um determinado fenômeno. Que formam, assim, a operacionalidade do conceito. Por que digo isso?  Porque tenho em mente que pensar por linhas e suas variações em vez de campos delimitados nos permite avaliar a todo momento não os conjuntos de pertencimento, mas sim as forças atuantes e de que modo o fazem – ou seja, que conexões elas estabelecem com outras linhas de força. Podemos, desse modo, criar um corpo não sedentário e situado, que funcionaria ao mesmo tempo como dispositivo avaliador das potências afectivas e dos enunciados em jogo – nesses encontros que nos agenciam e em que somos agenciados. Um conceito, penso, poderia mostrar assim em que sentido/sentidos ele se faz operativo ou não.
Nesse aspecto, o seu texto apresenta um aspecto processual do conceito de intervenção urbana que muito me interessa. Pois você diz que a “as intervenções urbanas advêm de um campo híbrido, expandido, abarcando linguagens artísticas variadas, não encerradas em si” (p. 18 – parágrafo 1).  Completa dizendo que “são fluídas, porosas, em oposição a qualquer sedimentação”.  Para então afirmar que “a tese vem circunscrever o campo de análise às intervenções urbanas relacionadas às artes cênicas, a partir das noções de performatividade”. No caso das intervenções urbanas, entendo que a linha de força operativa do conceito é a que propõe uma escuta e, justamente, a partir disso, a intervenção no contexto – numa pluralidade a ser conferida caso a caso, ou seja, na própria singularidade.
[Vou dar um exemplo de minha experiência pessoal. Transitava pela Avenida Prudente de Moraes com Avenida Contorno em Belo Horizonte, justamente quando a Prefeitura realizava uma intervenção urbana – termo/âmbito de onde foi retirado, em parte, os motivos e, então, o nome dessa prática artística de que falamos. Foi realizado um cercado protegendo uma área vazia, que viraria mais tarde uma dessas pracinhas sem nada, só com um banco e um painel no fundo. O cercado era de arame típico de um galinheiro. E não é que me deparo, então, com uma placa feita de um pedaço de tapume rejeitado possivelmente no canteiro de obra, entrelaçado na cerca, com os dizeres: “Não alimente as esperanças”. Não se trata de dizer isso é ou isso não é uma intervenção urbana – pois o pensamento tem mais o que fazer do que se dar à tarefa de ficar marcando tarjetas nas coisas e nos processos. Diria, antes, que a linha de força ali é a de ler o ambiente – o contexto – e de imediatamente responder, num nível poético – de poiesis – ao que estava em curso. Tanto fazendo uma denúncia quanto convocando, no transeunte, como insiste você em diversos momentos, um novo olhar sobre a cidade. Mas também de provocar uma percepção outra dos enunciados por parte do transeunte. Com diversas reverberações interpretativas].
Desse modo, sendo este um conceito operativo da sua tese, ele me convoca a ler as ações dos Coletivos sobre tais linhas de força de uma escuta/intervenção do contexto.  Entendo que as ações variam, em graus diversos, entre linhas de intervenção urbana e linhas de performatividade – este outro conceito com o qual você trabalha na tese. Sim, uma performatividade atravessada pelo urbano. Nesse caso, lembraria a partir de Deleuze e Guattari que os conceitos não são peças de encaixe, delimitadas por fronteiras. Eles possuem zonas de vizinhança e subconjuntos que se conectam com os subconjuntos de outros conceitos. Você postula, ao seu modo, esse caráter não fechado da noção de intervenção urbana. Que se torna fluída e bastante variável quando nos referimos a essa prática artística que se faz como prática espacial. Por exemplo, a ação Cegos, concebida e praticada pelo Desvio Coletivo e o Coletivo Pi. A ação não se modifica em função de leituras do espaço – eles cortam, atravessam o urbano como aqueles corpos de olhos vendados e enlameados. Eles se entendem como intervenção urbana, dão oficinas sobre isso. No entanto, eu penso que se trata de uma linha de força de atravessamento performativo e teatral do urbano. Pois que tal prática, a da intervenção urbana, possui então, como qualquer prática artística no seu efetivar, várias linhas de força. Uma delas me parece ser mais expressiva dessa prática:  a escuta do lugar e a ação sobre ele.  Exemplo do André Mesquita: no lugar onde teria o busto de uma personalidade, existindo somente o pedestal, um coletivo instala uma catraca de ônibus. Denunciam, assim, a autoridade ausente, mas que se faz atuante: a cobrança pelo transporte púbico. Ou um exemplo que extraio do Poro: nas luminárias públicas de uma praça, em forma de um globo, os artistas colam figuras de peixinhos coloridos. Por aí afora. Porém, não só isso, mas também o atravessamento. A performance Cegos se entende como uma intervenção nos fluxos da cidade, dos transeuntes principalmente.
[Uma observação: você me cita falando que a intervenção urbana “teria muito mais a ver como a apreensão de uma falha...” Trata-se, na verdade, de uma noção de Ileana Dièguez. Note que eu uso o termo “teria” e não o termo “tem” – justamente par me resguarda de uma distância estratégica desse enunciado – para mostrar que não é a minha opinião – apesar de eu não discordar disso. De todo jeito, o alerta foi bom, pois vejo que o tema precisa ser mais escandido – e eu mesmo não o fiz de modo um pouco mais exigente.]
De modo mais sintético e tendo em vista a complexidade e abertura do tema, diria, então, que seriam duas linhas de força: uma de intervenção urbana e outra de performance urbana. Sendo que a primeira não é necessariamente performativa – no sentido da presença do performador – e a última se inspiraria, cresceria e se deixaria contaminar pela anterior. Desse modo, entendo que as ações, por você apresentadas e discutidas, podem ser concebidas em graus e variações diversas. Entretanto, esse quadro não seria no mínimo justo com o seu pensamento, se elas não se entrelaçassem entre si, como você mesmo propõe. Que a performance urbana possa, então se avizinhar da intervenção urbana enquanto forças.
Pergunto, então, se em vez de a tese  “circunscrever o campo de análise à intervenções urbanas relacionadas às artes cênicas, a partir das noções de performatividade” (p. 18, linha 8 do parágrafo 2), não teríamos antes que ela se circunscreve num campo em que as ações, nos graus mais variados, transitam num campo em que os traços de intervenção urbana se misturam com os traços de performatividade, de modo que uns podem se tornar mais operativos que outros dependendo do tipo de inserção que realizam nos espaços públicos das cidades. Talvez, eu esteja pensando num sentido estrito e você num sentido amplo – mesmo assim, penso que uma linha intervencionista envolveria a escuta e, então, a ação no lugar a partir dessa escuta. Porém, podemos pensar, como sugeri antes, que o conceito se forma tanto por sua operacionalidade quanto pelas suas zonas de vizinhança. Daí a par intervenção urbana/performatividade, que forma a base de sua conceituação.
O segundo conceito de que você lança mão é, como vimos, o de performatividade. Penso que se trata, mais uma vez, de um conceito que se faz operativo no percurso da investigação, do âmbito em que as ações dos coletivos Obscena e Transeuntes se posicionam.
A performatividade é um dos conceitos que você mais adentra, explora e desdobra, constituindo quase quatro páginas da Introdução e treze páginas do corpo da tese. Fica aí a sugestão para você avaliar, dentro do seu estilo e desejo, se na Introdução não bastaria apenas uma primeira apresentação mais curta do conceito, para deixar o seu desdobramento para o corpo da tese, quando isso de fato parece ocorrer.
Você cita principalmente três vertentes teóricas para falar do conceito de performatividade. A mais presente e discutida por você parte de Josette Féral – que se mostra bem consistente para fazer deste um conceito operativo. Entendo que no seu texto três são os aspectos principais dessa linha de performatividade. Primeiramente, o possível do estreitamento físico entre as ações e os espectadores, de que você fala, ao modo de uma “diluição da barreira geográfica entre cena e público” (p. 90). Depois, a dificuldade de desvencilhar, como você afirma, o que é vida do que é cênico, pelo fato de as fronteiras entre o real e o ficcional não se mostrarem tão nítidas.  Quanto às fontes teóricas, entendo que, na sua tese, apesar de citar Austim e Judith Butler, você compõe de fato mesmo com Josette Féral e, por desdobramento, com Sílvia Fernandes. Apesar de Butler parecer importante para a tese devido às questões de gênero – a autora não volta a ser utilizada. Não posso aqui abrir essa discussão, apenas demarco a necessidade de pautar o questionamento: por que procedimentos vanguardistas, inicialmente com várias nomeações, tornaram-se performance e, na sequência, busca-se uma fundamentação destas ações na linguística.
Questionaria, ainda, a adesão à interpretação de alguns realizam de Josette Féral (de fato proporcionada em certo grau por ela) de que o conceito de performatividade superaria ou seria melhor que o de pós-dramático. Acho isso um grande problema.
Ainda na Introdução, você discute as relações entre os discursos do cotidiano das cidades em pauta, Belo Horizonte e São João del-Rey e os atravessamentos realizados pelas ações artísticas nesse mesmo cotidiano (p. 29).
O que me chama a atenção, nesse ponto, é o extenso e profundo esteio de estudos teóricos desses coletivos – principalmente de teorias sociais, políticas etc. Pois se estamos num âmbito de não haver textos ou narrativas a serem levadas ao público, mas experiências que se propõem partilhadas (com exceção da Menina morta e nua – mas não é a encenação de um texto ou de uma história), noto que esses textos teóricos respondem, em parte, a isso, tornando-se propulsores também de textos poéticos.
A singularidade desse movimento é que os próprios artistas estão prenhes de leituras e contaminações outras.  O que permite formar e adensar – e isso eu posso dizer que admiro muito – todo um campo temático, fruto de uma vivência em que as leituras e desejos individuais entram em formações compósitas – de corpos misturados (corpos físicos, corpos afectivos, corpos de significações, corpos de teorias etc.). Por isso é que eu afirmo, mais uma vez, a importância da formação gerada nos âmbitos desses coletivos, para pensar e realizar práticas artísticas que se fazem como práticas espaciais. As questões de gênero e sexualidade – principalmente o brado lançado pelas artistas-mulheres do Obscena – se misturam com enfoques sobre o significado de viver nas cidades – de como elas se configuram para a experiência de nosso tempo.
No Capítulo 2, intitulado Discursos do cotidiano, você articula diversos autores e vozes no sentido de tecer essa rede de conexões que nos permitem apreender a vida das cidades contemporâneas.
Em primeiro plano, destaco o cotidiano. Sou muito grato pela riqueza em nuances da sua abordagem sobre o tema. Sim, o cotidiano, que eu penso fazer parte daquilo que Deleuze chama de instantes quaisquer, um dos fatores cruciais, para ele, da modernização das artes.  Que não se contenta com os ápices – os cumes. Diria eu: ao lado, de banda, no entorno, mais embaixo, à margem, esquecido como refugo, intervalar, fraturado, no meio sempre e nunca somente no início e fim.
Aqui, faço observar que nós, artistas e tantos outros militantes estético-culturais, deveríamos lembrar que a desconfiança das intervenções e performances urbanas em relação às apresentações artísticas nas cidades para fazer falar a vida das ruas, deveria também se voltar para a análise dos dispositivos dessas práticas que nos motivam. Ou seja, penso que devemos desconfiar de nós mesmos – de nossos hábitos pessoais e artísticos - quando nos dispomos ao encontro com outro: o cotidiano das ruas. Não percebo essa desconfiança em relação às ações que você descreve – há uma identificação evidente – e merecedora – com elas, mas sem as colocar em momento algum em questão. Lembro-me do questionamento que você fez sobre a segunda ação do Contraponto, Coisas distantes, porém próximas, em que você me alertou de que estava assumindo uma característica fashion. A ficha demorou a cair, mas caiu. Pelo que fico imensamente grato.
Diria, ainda, que, se estamos nesse plano, os artistas não são os únicos a se proporcionarem uma poética dos instantes quaisquer. As pessoas que transitam no urbano não poderiam, também elas, também ser parte desses momentos intervalares?
Você articula diversos autores para dar conta desse cotidiano das cidades. Tomarei uma das linhas de força de seu texto: de um lado a ambivalência do normativo, do hegemônico e do habitual, de outro lado, a inventividade, a heterogeneidade e multiplicidade. De um lado os mais fortes, de outro os mais fracos. Num aspecto, a cidade como mera passagem, de outro como ocupação criativa e múltipla.
Entre uns e outros, a necessidade de tomar o pulso das ruas e ao mesmo tempo fazer o diagnóstico de nosso tempo, de nosso momento. Uma das leituras parte de Zygmunt Bauman, outra parte de Michel de Certeau – lembrando ainda Debord e Foucault, entre outros que você cita. Fico grato, mais uma vez, por você me trazer a necessidade de me dedicar a Certeau. Que tem sido um grande intercessor de muitos artistas da situação, da arte site-specific, das intervenções e performances urbanas.
Porque elejo, no seu texto, Certeau em primeira mão? Porque dali se mostra que existem sim as estratégias do poder – que normatizam, hegemonizam etc. – mas também que há táticas de resistência, que se fazem criativas, que abrem brechas e rupturas como você mostra.
Percebo que há um pensamento triste que insiste em nos atravessar, oriundo de muitas teorias críticas de nosso tempo, cujos diagnósticos apontam para o enfraquecimento de nossa libido diante do poder econômico e político.
Será assim mesmo? Penso que Certeau, diferente de Bauman –  traça um plano de potência e de resistência criativa.  Deixo para você o retorno disso, já que não tenho ainda me debruçado sobre o primeiro suficientemente e o segundo quase nada.
[Lembro-me que nos anos de 1980, quando eu e mais algumas pessoas tivemos um encontro com Jorge Mautner – no momento em que estávamos sob o refluxo dos movimentos de experimentação política e existencial dos anos de 1970, mas que no Brasil ansiávamos pela democratização – que agora veio a se mostrar tão frágil novamente diante do golpe midiático-institucional. Não sei porque, abordei o caso dos malandros/artistas e boêmios que foram coagidos a aceitar o Estado Novo, aderindo ao trabalho. Talvez porque, naquele momento, me visse assim também. Só que, imbuído de teorias críticas, eu poderia talvez tomar aquele bonde sem cantar loas, mas estando consciente do que estava ocorrendo comigo e na sociedade. Uma observação: tudo isso muito injusto, porque o movimento punk já estava se disseminando.
Enfim, disse a ele: o grande malandro, desafeto de Noel Rosa, Wilson Batista, cantou loas ao Estado Novo. Os versos do Bonde São Januário: Quem trabalha/ É quem tem razão/ Eu digo/ E não tenho medo/De errar/ O Bonde São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu/ Que vou trabalhar/ Antigamente/ Eu não tinha juízo/ Mas hoje/ Eu penso melhor/ No futuro/ Graças a Deus/ Sou feliz/ Vivo muito bem/ A boemia/ Não dá camisa/A ninguém/ Passe bem!”
Mautner me ouviu atentamente. Mas logo em seguida desabou numa boa gargalhada dizendo: Calma! Quem te disse que é assim? Você ficou com a letra mas não captou a música. É samba de breque: ele vai trabalhar, mas vai devagar, vai freando, vai parando].
Mas veja o que Bauman diz. Pego uma citação da página 60, quando ele diz que o mundo moderno (lembro aqui, desencantado como muitos sociólogos supõem), é um mundo em que a ordem é “esmagadora e irresistível”.
Não estou reivindicando a esperança ou o otimismo frente a opressão. Antes disso, quero dizer que uma parte do discurso intelectual e crítico me parece se vestir do dobramento que realiza sobre a impotência do outro diante de forças intransponíveis e transcendentes. Tais forças são curvadas numa subjetivação em que o outro, na sua capitulação passa a fornecer um poder extra ao que nomeia.
A ambivalência do poder e os modos em que ele se efetiva no nosso tempo, principalmente quando pensamos nossas ações arte-ativistas, tem nos desafiado muito.  Podemos ver isso no aspecto da percepção muito pertinente e sutil em vários desdobramentos, presente no seu texto, de que os espaços públicos se configuram segundo os discursos hegemônicos. Porém, alguns autores irão potencializar a afirmatividade – não o otimismo – dos modos de resistência e criação. E não só por parte dos artistas.
 Concordo com você quando insiste em denunciar essa mercantilização do afeto nessa espetacularização do viver nas cidades. Lembrando, ainda, como você diz, dessa colonização do imaginário sobre o que é o urbano. Dos modos como a diferença é banida. O que conecta, como você o demonstra muito bem, a ação incisiva dos coletivos sobre esses imaginários traduzidos em atitudes no âmbito dos espaços públicos. Pois que os coletivos – e isso deve ser frisado – não se contentam em abordar os temas do preconceito sobre a mulher, sobre os negros, os índios e os homoafetivos num espaço protegido de galerias ou salas de exibição. Eles vão lá, desprotegidos, no meio da multidão.
Somente lembraria, Marcelo, que a lógica do capital tardio, para lembrar Fredric Jameson, mas também para trazer a discussão de Maurzio Lazzarato, Negri e Hardt, não é mais uma lógica de mercado ao modo de mercadorias manufaturadas.  Não seria potente, também, nos limitarmos a pensar que o mercado global é feito somente de produtos – pelo contrário, nós nos tornamos, nossas vidas, nossas subjetividades, parte da produção e não somente somos consumidores. Além disso, as performances dos anos de 1960 acreditaram que bastaria desmaterializar a arte como mercadoria, bem manufaturado, para se formar uma via de resistência ao capital. Uma grande ilusão, pois os processos se tornaram também modalidades de um fluxo de capital desmaterializado, que operara cada vez mais por eventos. Tema que apenas anuncio, para continuar a conversa, sem poder aqui desenvolver. Aliás, alguns marxistas dizem que o capital não se interessa tanto por mercadorias, mas sim pelo fluxo. É necessário se livrar logo delas, colocar em circulação, para fazer o capital girar.
Volto-me, para finalizar, para as ações, o que comecei a fazer no início, ao abordar os dois conceitos que você apresenta, o de intervenção urbana e o de performatividade.
Tive a oportunidade de ver uma versão de Baby Dolls na Praça Sete em Belo Horizonte. Entendo que ali se efetivam em maior grau as linhas forças da performance urbana, isto é, de uma performatividade que incide sobre o urbano, que nele se perfaz.  Principalmente pela relação que se estabelece com os transeuntes. Há ali, como você mostra muito bem, toda uma plasticidade da caracterização, dos objetos, da ação, do caráter quase de instalação em meio ao movimento do urbano. De “corpos não normativos”, que proporcionam, como você diz Ferall, citada por você: “novos hábitos de percepção”. Sim, a ação entra numa zona de vizinhança com a intervenção urbana, seguindo sua leitura. Mas entendo que as forças predominantes são as da performance urbana.
Você diz, no fim da página 163, que “interessa a esta ação  a forma que a cidade contamina e é contaminada pelo trabalho”. Gostaria, se possível, de que você falasse um pouco mais, se assim o desejar, de como isso se dá.
A ação seguinte é A menina morta e nua, do Coletivo Transeuntes. Para mim, mais uma vez se mostra aqui a potência dos coletivos em pauta, de circunscreverem um tema e de o lançarem no meio urbano, reitero, não como apresentação artística, mas hora como rito, hora como instalação, hora como compartilhamentos. Uma história terrível, a da Menina morta e nua, que eu não chamaria de tragédia para não esvaziar o sentido que este termo tem e que vai se perdendo na opinião. [Na sua defesa, você falou em “tragédia cotidiana”, para justificar o uso do termo. Penso que ainda não é apropriado. As desgraças, misérias, acidentes, ocorrências terríveis do cotidiano não são tragédias. No entanto, a peça/performance A menina morta e nua poderia sim ser uma “tragédia cotidiana” – mas nesse caso você teria que nos dizer porque caberia o termo tragédia – qual a historicidade desse uso etc. Pois que, tragédia é uma obra/um modo de poética e não um acidente. Um filho que mata o pai e desposa a mãe não é uma tragédia. Nelson Rodrigues falava de suas obras como tragédias suburbanas, outros falaram de tragédias cariocas – mas são obras e não ocorrências. ]
As linhas da intervenção urbana se mostram, aqui bastante atuantes, junto às linhas de uma performatividade que se faz atravessar no urbano, nos espaços públicos da cidade. Pois vejo que as dobras de semiotização – a inflexão que as diversas materialidades enquanto signos assumem na ação – se dão com uma leitura dos lugares. Talvez seja esse o sentido estrito da intervenção urbana. Não só pelas escolhas das locações e trajetos, mas principalmente em relação aos hábitos de uma cidade turística como São João del-Rey, como você relata: de comprar souvenir, de tirar fotos ao lado de monumentos e quem sabe, de pessoas etc. Como espectador, imagino, eu me veria capturado na rede, na tessitura e na semiotização da performance – minha presença sendo parte do acontecimento. Estamos no âmbito da ficção, porém, devolvidos simultaneamente à pragmática do mundo cotidiano. Uma cena que se torna, então, como diz você, “um espaço praticado”.
Uma coisa me inquietou: por alguns espectadores aparecem sorrindo em uma e outra foto – por exemplo, na página 176.
O Espaço do Silêncio, do Obscena, me parece entretecer, potencializar e aguçar muito mais as linhas de uma  performatividade que atravessa e se perfaz no urbano, como você as apresenta no texto. Esse “manifesto poético”, como você diz, esse grito entra no urbano com um “tempo dilatado”, provocando aproximações, estreitamentos físicos, no caso de Nina Caetano, devido ao tamanho das letras que ela exibia, formando tanto nela quanto com Leandro Acácio imagens potentes, de corporeidades em instalação no meio urbano. No caso da extensa descrição que você faz do contexto político e geográfico da Praça da Estação, me pergunto se é tão necessária ao seu texto, visto que não me parece dialogar diretamente com a ação, que poderia ser feita em outro local sem prejuízo do prosseguimento desses ritos sofridos de um silêncio que, como você mostra, grita.
A ação, Indiozinhos, do Transeuntes, que segue nessa trilha de denúncia, mas com outras características, me coloca, pelo seu relato, diante de outras questões. Como a análise, profunda e extensa, é voltada para as inflexões da ação cênica com as questões indígenas, eu me vejo um pouco distante da materialidade da cena e mais próximo do referido, ou seja, para a temática que ela aponta. Então, me pergunto, se não estamos de fato mais próximos da representação.
Enfim, as ações Entre Cadeiras, do Obscena e O Corpo-Espera na Cidade, do Transeuntes. Nestas eu vejo os traços de intervenção urbana e de performatividade não só potencializados, mas igualmente aguçados ao extremo. Sobre a primeira, a definição de Nina Caetano, citada por você, diz muito sobre a ação: “uma experiência de coreografia urbana” – que não é de inserir coreografias no urbano, mas daquela infiltração no tecido do urbano. Além das cores, dos objetos e dos posicionamentos do performadores, a leitura de textos literários para as pessoas, para os transeuntes me faz voltar para essa materialidade do lugar do encontro – esse compartilhamento e estreitamento físico que é tão caro para sua tese e que se mostra exemplarmente como um traço de performatividade. Com seus dobramentos: o da plasticidade, o da interação e o das subjetivações do transeunte. E como você mostra, “buscando atingir o espectador pela potência das imagens sequenciais que se apresentam”, em que se vai além, diz você, da mera verbalização de um texto. Sim, um catalizador – como você diz.
O corpo-Espera na cidade me oferece igualmente, pelo seu relato e argumentação, essas linhas de intervenção urbana e performatividade também potencializadas e aguçadas.  Essa ação me lembra muito os corpos das pessoas com que muitas vezes nos deparamos, principalmente na região da cidade, em que elas não vão a lugar nenhum. Não estão dormindo, não estão morando ali, mas elas param e ficam. Me trazem, além disso, um pouco desse corpo esgotado, de que fala Deleuze dobre Beckett. Fico muito tocado pelo seu relato, por “essa volta primária do corpo do performer como imagem, e ao mesmo tempo como narrativa visual”, em que os performadores criam estranhamentos e tempos dilatados.
Por fim, queria abrir essa conversa para mais assuntos, mas o meu tempo, por hora, finda. Seguem algumas anotações pontuais – incluindo algumas partes que não citei aqui. Muito agradecido por fazer parte desse momento.
Luiz Carlos A. Garrocho, Bh, Agosto de 2016.
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Faço aqui algumas observações mais pontuais:
- Não chamaria as ações dos Coletivos de obras – pois, se performativas, elas são muito mais acontecimentos. Obras processuais, sim. Mas o termo é carregado de conotações.
- Página 17 – primeiro parágrafo: “as intervenções urbanas se apresentam em meios aos elementos constitutivos do cotidiano” – trocaria “se apresentam” por “se dão”, visto que a meu ver o que as constitui não é a apresentação. O que me parece estar em contradição com suas ideias.
 - Página 32, segundo parágrafo: “A partir da organização...” – esse trecho todo me parece repetitivo, pois você já falou isso antes, não?
- Página 33, primeiro parágrafo: “ estetizando as ruas pelos estados de presença e pelas diversas ocupações espaciais...” Penso que a palavra “estetizando” não seria tão potente no contexto da sua tese, até mesmo controversa. Talvez você tenha pretendido discutir essa noção, aprofundá-la. No caso, acho que fica solta, pedindo desdobramento. Caso queira manter, seria interessante então dizer em que sentido você coloca o termo – pois ele está gasto, tomado como algo fashion quando o seu sentido só poderia ser outro para você.
- Tive dificuldades de acompanhar a transição argumentativa, na página 50, de Foucault para Marcuse e deste para Arendt – me parece excessivo e desorienta um pouco o leitor. Não vejo que são autores tão importantes e necessários para a sua tese. Inclusive o texto que vai do último parágrafo da página 50 ao primeiro ao topo da 51, terminando com Arendt, me parece desnecessário. O mesmo na página 53. Eu ficaria com Foucault – acho que Arendt joga para outros desdobramentos. Me parece não fazer falta.
- Você diz, na página 181, último parágrafo, que as performadoras de Baby Dolls “dividiram o espaço com as pessoas em situação de rua, com os pedestres, com comerciantes informais, com turistas etc. (talvez você quer dizer pessoas que estão em viagem, dada a situação nada turística do lugar).
- Será que todas “as manifestações públicas em espaços urbanos procuram” mesmo, como você diz, no segundo parágrafo da página 68, “alterar as relações de poder”? As manifestações evangélicas, os grupos que defenderam o impeachment etc. não estão também aí, nos espaços públicos?
- Não entendo a utilização do termo “comunhão”, utilizado por você na última linha da página e primeiro parágrafo da página 80, para dizer dos compartilhamentos entre espectadores e performadores. Não consigo ver em que sentido se daria essa comunhão. Pois você utiliza, noutros momentos, um termo que julgo muito mais apropriado, que é a noção de compartilhamento, assim como a de interação.
- Nesse mesmo parágrafo, no meio, há uma citação sua que muito me toca, como outras do seu texto. Que me parece, contudo, em contradição com expressões que você usa ao longo do texto e que remetem aos regimes de significação: consciência, reflexão, discussão etc. O mesmo eu vejo no meio da página 81. Gosto muito desses textos, como também de outros em muitos lugares. Só que os vejo, como disse, em contradição com alguns aspectos ligados à reflexão crítica etc.
- Não entendi a expressão “olhares fictícios” na primeira linha da página 238. Soa como algo falso, quando ficção para mim é um termo potente, que não deveríamos desvalorizar.
- Você utiliza diversas vezes a expressão “diluição do real e ficcional”, com variações. Na página 257, 11 linha, isso volta a aparecer. Não chamaria de “diluição”, mas de desfronteirização, de inclusão mútua do real e do ficcional, de aproximação e até de ambivalência, ambiguidade etc. Não acho que uma coisa se dissolve na outra. A inclusão mútua não significa perca das características de cada uma – pelo menos é o que penso até esse momento.




sábado, 17 de setembro de 2016

PERFEITAS



Por Kauê Rocha
À primeira vista, sorrisos largos que quase estouram o limite da boca. Dentes expostos, olhos vivos criando um olhar esbugalhado; a mais completa expressão da felicidade. Entre movimentos repetitivos e expansivos, frases de exaltação ao lar e ao modo perfeito de viver são ouvidas pelo trajeto tortuoso e desengonçado dos corpos. São bonecas. São perfeitas. Nessa mistura de sorriso e perfeição, que se estendia de maneira quase que insuportável, o incômodo tornava-se evidente. Misturando-se a uma maquiagem borrada e disforme, o suor escorria das faces. Ao primeiro estímulo para libertar-se daquele corpo dominado e passivo, os cabelos se prendem ou se soltam livremente, despreocupados. Vestidos são arrancados e lançados ao chão. O andar é fluido, o sentar é livre. Respira-se. A boneca some. Não há perfeição, há corpo. Há vida.