Morra
na Rua
Consideramos todas as partes de uma
pesquisa importantes. Mas no caso do Transeuntes – Grupo de Estudos em
Performance, acreditamos que o momento da apresentação seja um dos mais
potentes já que nos possibilita refletir sobre um trabalho construído a meses. Situações
que promovem reflexões assim são as apresentações em festivais como a ocorrida
no início do mês de maio de 2014 no 4° Festival de Teatro de Ubá.
Alguns Transeuntes chegaram a
pequena cidade mineira na sexta-feira (dois de maio) enquanto outros puderam
fazê-lo apenas no domingo. Àqueles que estavam no município foi dada a incumbência
de visitar a antiga estação de trem para estabelecer os locais onde
aconteceriam cada cena. O trajeto foi estabelecido como forma de valorizar
tanto as cenas quanto de provocar novos usos do espaço que é associado por
alguns moradores como um local sujo, freqüentado por prostitutas e dependentes
químicos. A proximidade com uma casa de prostituição não ajuda a valorizar a
estação.
Cabe
aqui uma ressalva. Evitamos ao máximo excluirmos a possibilidade de dialogar
com os moradores, sejam eles excluídos ou não, da cidade de Ubá ou de qualquer outra em que
nos apresentemos. Tal atitude destoa completamente de nosso discurso e da
construção da metodologia do grupo. Contudo esta preocupação parece não estar
atrelada de modo natural a todos os grupos que se apresentam na rua.
Alguns integrantes do nosso grupo de pesquisa
que assistiram outras apresentações sentiram-se incomodados com a forma
hierárquica com a qual alguns grupos que se apresentaram trataram moradores de
rua e passantes embriagados, como se no momento espetacular estabelecido com a
presença de “artistas” se anulassem as sobreposições de signos típicas das ruas.
Pedro Mendonça, ator e pesquisador do grupo Transeuntes alegou ter refletido
muito sobre os acontecimentos e como ocorre efetivamente a apropriação dos espaços. Segundo ele muitas vezes as peças
trazem conteúdos ideológicos que discutem as questões de marginalização,
relação entre o espaço público e privado, mas talvez respondam mais a um
modismo em lidar com os temas do que um envolvimento engajado interessado em
mudanças. Uma vez na rua deve-se, ao menos, considerar a existência autônoma de
agentes externos que podem modificar, e no caso dos Transeuntes muitas vezes
para melhor, os rumos de uma ação. Pena e Junior reforçam tal pensamento em seu
Partilha e Conflito no Espaço Público:
Experiências Urbanas na Cidade de Salvador, quando alertam para o fato de
que uma vez na rua:
“(...) os conflitos não
devem ser encarados sob uma perspectiva negativa, visto que o espaço público é
um lugar de coexistência das implicações cotidianas, do mesmo modo que partilha
pode corresponder, diferentemente de compartilhamento, a relações de
segmentação dos usos no espaço.” (PENA;JUNIOR, 2012, p. 46)
Nós que pretendemos usar a cidade
como lugar para a execução de nosso trabalho, como espaço para a prática de
nosso entusiasmo criador devemos pensar “A cidade como lugar do estranho e do
diverso, para além da comunidade de iguais, a cidade como testemunho dos
acontecimentos [...]” (RIZEK, 2010, p. 72) e incluir toda esta potencialidade e
ambiência no material criador. Não que o reconhecimento de que a rua e seus
usuários não devem ser desconsiderados como interlocutores facilite seu uso. Alguns
problemas surgidos logo na primeira visita ao espaço de apresentação confirmam
a máxima.
A primeira visita apresenta algumas
dificuldades. Principalmente no que concerne a música. Diferente da última
apresentação – na cidade mineira de Araguari – não teremos a caixa de som com
rodinhas. A música, que muitas vezes auxilia trazendo ritmo à cena, poderá ter
sua execução prejudicada. Neste momento aparecem também outras tensões. Ao
passarmos um ensaio técnico surgem diversos olhares sobre a cena e o diretor
não consegue realizar seu trabalho sem interrupções e comentários. Uma reunião
tenta amenizar as diferenças. Nela somos relembrados sobre o papel de cada um
no grupo e é solicitado que deixemos o diretor cumprir o seu papel. Em
processos de criação semelhantes ao nosso – em que o ator traz materiais criativos
a serem organizados e formatados pelo diretor - é entendível que todos se
sintam pertencentes e de certo modo autores. Mas cabe a figura do diretor, a
partir de seu olhar externo, decidir o que melhor condiz com as ideias
articuladas pela peça em questão. Limadas as divergências somos convidados a
voltarmos para o alojamento de onde devemos retornar já para o espetáculo que
acontecerá ás 16h00. É sugerido que tenhamos um momento do grupo – em forma de
alongamento e aquecimento - antes da apresentação em si.
A falta de estrutura e suporte por
parte da produção local associada com avisos de que em outras peças
apresentadas no festival ocorreram intervenções bruscas de passantes e frequentadores
do local cria uma atmosfera que a nosso ver reverberou positivamente na
apresentação. Longe de insinuarmos que o grupo funcionou apenas a partir de uma
demanda de possíveis intrusos, desejamos mais atentar para como a convivência
estabelece um amadurecimento das relações. Se por um lado ocorrem diversos
momentos de diferença de opiniões e, entre tantos corpos intencionados em se
expressar e defender seu ponto de vista, alguns conflitos, temos de algum modo
um fortalecimento das relações entre os membros do grupo. Tal afirmação foi
confirmada diferentes vezes na apresentação quando a partir das demandas
surgidas encontraram-se soluções em conjunto. Talvez isso tenha se dado
confirmando o que bem diz Nicolete:
A
afinação entre os parceiros que o convívio tende a proporcionar leva, à parte
os conflitos também gerados pela intimidade, a certa sintonia criativa, como se
uns ‘lessem o pensamento’ dos outros, de modo que as respostas as estímulos
possam vir rápidas, os acordos ou os enfrentamentos possam se dar mais
objtivamente (sic). (NICOLETE, 2010, p.37)
Alongamentos
e aquecimentos realizados em conjunto ajudaram a construir uma base de
confiança no outro, necessária a qualquer grupo que se disponha a trabalhar em
conjunto. No caso dos Transeuntes isso se dá de forma vertiginosa. A
apresentação lida com temáticas polêmicas e com corpos diferentes de padrões hétero-normativos.
Somado a isso temos o fato da peça ser extremamente interativa e dinâmica no
que diz respeito ao uso do espaço. O deslocamento acontece na rua e mescla o
uso de espaços fechados e abertos ampliando assim as possibilidades de
intervenções externas.
Decidimos então que nas áreas
externas (praça e varandas da estação) usaremos o som instalado em uma tenda no
centro da praça. Tememos que sua potencia nos deixe inaudíveis, mas de qualquer
forma o trânsito em torno da estação parece ir ao encontro disso. Como a ala da
estação que usaremos estava ocupada por outra cena optamos por trocarmos de
roupa na parte externa. Decidimos algumas modificações e apesar da apreensão
gerada assumimos que isto faz parte da construção do espetáculo e da linguagem
do grupo, principalmente se considerarmos que o grupo Transeuntes é associado a
um grupo de extensão que se chama Urbanidades:Intervenções.
Temos na decisão de alterações
evidências do amadurecimento dos membros do grupo. Após a modificação ou
suprimento de alguns elementos, cenas ou ações, não notamos nenhum
constrangimento ou apego. Entendemos que o que importa não é a conservação de
ideias pessoais, mas o espetáculo como um todo. Junio de Carvalho é convidado a
entrar depois do tempo habitual, e mesmo que isso de certo modo dê menos
visibilidade a sua cena não o incomoda. A praça é enorme e cerca de duzentas
pessoas acompanham a cena inicial. Percebemos logo de início que teremos que
ampliar nossa voz e gestos. Entendemos que nossa energia e intenções devem ser
claras e elevadas já que a competição por atenção em uma hora de grande fluxo
de pessoas e automóveis é quase injusta. Logo no trajeto entre a amostra grátis
dos efeitos do creme da marca fictícia MORTA e a decida do véu temos um destes
momentos. Um veículo longo, espécie de fusão entre trenzinho e trio elétrico
passa na rua sobre a faixa que usaríamos. A solução é incluir o “trem” e seu alto
som mecânico como parte do espetáculo. Outras situações convidaram os atores
pesquisadores a saírem de seu lugar comum.
Alguns integrantes experimentaram apropriações
do espaço físicos que promoviam maior visibilidade. Foram utilizadas mesas,
construções de concreto e vigas de madeira e como suporte para as ações das cenas.
O acesso a praça é aberto e o fato de ser cercada por diferentes ruas
possibilitam a chegada dos espectadores por todos os lados. Este cerco literal
provoca os atores a desafiarem qualquer sentido permanente de frontalidade.
Tanto o número de espectadores quanto sua disposição não determinada dificulta
a visibilidade. Temos a impressão de que é quase impossível assistir todas as
cenas com qualidade de visão. Em uma conversa posterior a apresentação somos
alertados e assumimos que em momentos iniciais de algumas cenas precisamos
convidar os espectadores mais próximos a sentarem. Mesmo não resolvendo todo o
problema da visibilidade pode otimizar algumas cenas.
Um
ditado popular traz a máxima “inimigos: se não pode com eles, junte-se a eles.”
Se alguns veículos surgem interrompendo ações e falas, é da nossa escolha o uso
de um deles. Na cena da mesa de café uma personagem surge de algum lugar de
forma inesperada. Como o espaço escolhido para a cena em Ubá não permitia o
artifício escolhemos que a chegada seria de carro. A escolha condizia com a
intenção da cena, já que a figura acabava de chegar de uma viagem de compras. A
procissão estabelecida na interação direta com o espectador que recebe velas
funciona muito com a iluminação noturna. A cena final apresenta o ápice do
problema da visibilidade e o final da peça apresenta problemas que precisam ser
revistos.
Revendo
todas as apresentações, desde os ensaios abertos e a participação em festivais
acreditamos que esta tenha sido a grande estréia do MORRA. A apresentação
ocorreu na rua, com tudo o que ela possui de provocação e diversas situações só
puderam acontecer nesta relação. Os espectadores estiveram presentes e, a
partir de, podemos detectar quais disposições e ações das cenas são ou não
passíveis de reflexão e reconfiguração. Os preparativos para uma próxima
apresentação, em Belém do Pará, no fim do mês de maio com certeza terão as
marcas desta experiência nada morta.
BIBLIOGRAFIA
NICOLETE,
Adélia. Dramaturgia em colaboração: por um aprimoramento. Subtexto. Ano VII. V.7. Dez. 2010
PENA,
J.S; JUNIOR, O. A. W. Partilha e Conflito no Espaço Público: Experiências
Urbanas na Cidade de Salvador. Redobra.
Salvador, Bahia. V.9. 2012
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